A Doutrina do Choque, a pandemia e a pergunta: “Agro pode ser regenerativo?”

Enquanto a fome atinge 19 milhões de brasileiros durante a pandemia, quase a metade das famílias têm algum grau de dificuldade para se alimentar e cerca de 27 milhões de pessoas sobrevivem em média com R$246 reais por mês o Brasil criou 238 bilionários durante a mesma pandemia. Juntos eles têm quase o PIB do Chile.

Não coincidentemente, a maioria desses negócios são bancos, fundos de investimentos e conglomerados de supermercados, ou seja, o tipo de negócio que tira a autonomia da população. E nós seguimos cegos sem uma revolta popular em massa diante desse absurdo. Com certeza e folga poderíamos usar estes recursos para amparar os que passam fome e dificuldade nesse momento tão sofrido da nossa história.

Comento hoje alguns links para documentários, reportagens e aulas que foram compartilhadas em minhas redes desde a semana passada.

O Brasil chega a 238 bilionários em 2020; fortuna total é quase o PIB do Chile – Matéria do caderno de economia do Portal UOL.

Para ajudar a entender como essa apatia diante de crimes tão graves contra a humanidade são possíveis, eu trago o trabalho da ativista e autora Naomi Klein, “A Doutrina do Choque”. O documentário foi compartilhado pela Márcia Silva (@simbioticabioaliemntos), ativista do movimento agroecológico no RS que participa do grupo de Agricultura Regenerativa do telegram.
Nota: Quem quiser participar é só pedir o link por mensagem direta, não disponibilizamos o link para evitar os ataques de robôs).

Naomi traça a genealogia do “Capitalismo de Desastre” desde os experimentos conduzidos pelo psiquiatra Ewen Cameron em parceria com CIA. Esses estudos mostravam como as pessoas ficavam mais suscetíveis a sugestões de comportamentos e confissões após receber eletrochoques e/ou passar por longos períodos de privação sensorial trancafiados sem poder ver o mundo externo, sem cores, sem sentir sabores, texturas e afagos.

Esse link foi compartilhado no grupo alertando para o fato de que a pandemia, embora real e desastrosamente assassina mediante a suposta incompetência de Bolsonaro, pode estar sendo usada como uma Doutrina de Choque para que a população aceite sem questionar as reformas legais, fiscais e privatistas da agenda neoliberal desse governo.

E eu digo suposta incompetência porque quando analisamos a Doutrina do Choque e como ela foi usada por Milton Friedman – o economista guru da escola de Chicago, onde Paulo Guedes se formou – fica claro que o neoliberalismo sempre usou o choque, a desgraça, para fazer com que a população aceitasse reformas que só privilegiam a elite.

Exatamente como estamos agora, em meio à pandemia, aceitamos inertes que 238 bilionários tenham a riqueza de um país inteiro, enquanto 19 milhões de brasileiros passam fome durante a pandemia e 27 milhões de pessoas sobrevivam em média com 246 reais por mês.

A desgraça brasileira atual está à serviço de uma elite sociopata, classista e subserviente a poderes corporativos estrangeiros.

Leiam o livro e assistam o filme. A maior hipocrisia esclarecida é que em nenhum lugar onde a Doutrina do Choque foi utilizada para implementar a economia neoliberal as condições de vida da população melhoraram. Via de regra, a elite mundial força a mão dos grandes impérios, usa de violência, desinformação e controle para concentrar renda, poder e território. É o livre comércio desta elita, nunca foi do bem estar comum.

Tanto o livro quanto o filme trazem vários exemplos dessa hipocrisia desumana indo desde o primeiro laboratório de Friedman, a América Latina, passando pela Inglaterra, Polônia, China, União Soviética e Ásia, até chegar na Guerra do Iraque.

E o agronegócio nesse contexto atual, como fica?

Enquanto a pandemia e as mais de 4 mil mortes diárias são usadas como Doutrina do Choque, o governo desmonta as instituições ambientais, favorecendo o agronegócio, a mineração e a construção civil, que nada tem a ver com produção de alimento, infraestrutura ou moradia. Estas são só fachadas para as maiores plataformas de escoamento de petroquímicos, concentração de renda e poder nas mãos de pouquíssimas corporações transnacionais.

O IBGE, claro! Está sendo desmontado também, porque sem dados e análises sérias sobre como está a população, fica mais fácil governar com a Doutrina do Choque, notícias falsas e propaganda – o Correio Brasiliense traz uma reportagem sobre este tema .

E aí vem a propaganda. Enquanto todas as instituições que poderiam frear os crimes ambientais do agronegócio e documentar sua concentração de renda e terras são desmontadas, as notícias de que o agronegócio pode ser regenerativo aparecem.

O Estado de São Paulo publicou uma reportagem intitulada “Agricultura Regenerativa”. Nela Roberto Rodrigues conta uma estória da Carochinha que os avanços nos últimos 35 anos foram em melhoramento genético (leia-se transgenia), adubação (leia-se escoamento de produtos petroquímicos e mineração) e mecanização (leia-se desemprego no campo e êxodo rural forçados), mas que agora “o mundo rural avalia ações ligadas à biologia”.

Roberto Rodrigues diz que a Agricultura Regenerativa pode ser vista como um agente de paz, mas não aborda em nenhum momento a definição do termo que existe para além da regeneração ambiental, a regeneração sociocultural – que demandaria uma reforma agrária e modos de produção que aplaquem a cultura e qualidade de vida das pessoas no campo – e a regeneração econômica que demanda que os recursos gerados circulem dentro da biorregião onde foram produzidos.

O Globo Rural deste domingo, dia 11/04, traz na reportagem sobre a “Agricultura Regenerativa” a produção de grãos de milho e soja orgânicos em milhares de hectares como um avanço. Em sua versão escrita um dos sócios da empreza informa um quadro com apenas 60 funcionários. A reportagem não explica nem contextualiza como vivem esses funcionários ou vácuo humano causado por sistemas de produção que podem ocupar milhares de hectares com um número tão pequeno de pessoas.

A reportagem também não revela que o que na verdade se desenrola é o mercado de commodities orgânicas. E, que como todo mercado de commodities, esse mercado “orgânico” tem muito mais a ver com concentração de terras, poder, renda e capital especulativo que com produção de alimentos saudáveis regenerando as dimensões socioculturais e econômicas das biorregiões onde esses grãos são produzidos.

A agrofloresta, que em área comparativa com os milhares de hectares dedicados a produção de grãos, é uma parte quase inexistente, é usada como garota propaganda. E por fim, um branco super privilegiado é apresentado como herói, escondendo assim o protagonismo de mulheres, de indígenas, de povos tradicionais, do MST e tantos outros que protagonizam o movimento realmente regenerativo que é a AGROECOLOGIA.

Uma das missões mais importantes que temos hoje é protagonizar a definição, a prática e o exemplo da Agricultura Regenerativa. A definição e as métricas e indicadores desse termo precisam ser amplamente difundidos por nós que protagonizamos a agroecologia, a empatia, a economia biorregional e o êxodo urbano pelo movimento de transição.

Para ser verdadeiramente regenerativo o agro precisa distribuir terras, renda, ter planos de carreira com salários dignos para seus funcionários. Precisa cuidar para que as pessoas que vivem no campo, que são plurais e vão muito além da lógica de produção, tenham tempo livre, qualidade de vida, segurança e soberania sobre seus territórios e alimentos. Precisa regenerar a economia em sua biorregião e não produzir para o mercado financeiro.

O dia que a produção do agro for regenerativa nesses sentidos, talvez ela seja verdadeiramente regenerativa.

Até lá, o que o agro faz ao usar esse termo é usurpar o protagonismo das pessoas do campo, dos movimentos sociais e ativistas. Da mesma maneira que já usurpou e distoreceu os termos “orgânico” e “sustentável”.

Aqui no site eu já escrevi sobre este tema no artigo O que é um produto orgânico? Podemos confiar no rótulo? e sobre Como funciona o controle de danos do Agronegócio explicando como esses conglomerados transnacionais usurpam e distorcem os termos.

Para fechar eu trago para vocês a aula Regeneração de Solos Degradados com Processos Biológicos, do agricultor e ativista Pedro Meza (Instagram @pedro.meza.33).

Um testemunho de como a soberania alimentar, a saúde e a possibilidade de expressarmos nossas vocações em sua plenitude está diretamente ligada ao acesso de um pedaço de chão onde o lar vai do solo à mesa onde comemos. É por isso que digo que só escaparemos essa extinção em massa em Santuários de Sanidade Mental e Ecológica.

Pedro é um artesão, um guardião e um druida do solo! Buscando soluções que trazem autonomia e eficiência para o produtor, Pedro experimenta com vários métodos de regeneração de solos degradados. Tinturas, microorganismos eficientes, chás de composto e outros inoculantes de vida vão para o solo e chegam para a mesa da família com muito carinho, com muita competência e um senso estético de um renascentista da regeneração planetária.

Viver como o Pedro vive, em contato direto com sua vocação, com cheiros, texturas, sabores, cores é um remédio para a privação de sentidos praticada pela doutrina do choque durante a pandemia.

Não temos um conjunto de soluções que não passe necessariamente por uma gestão ecológica, social e economicamente regenerativas, pela reforma agrária e o esvaziamento das cidades, pela agroecologia e pela soberania alimentar!

Se vocês têm se beneficiado pelo meu conteúdo e reflexões, eu peço que se inscrevam no canal do youtube, na lista de emails aqui no site, na plataforma de interação sobre planejamento rural e agricultura regenerativa e que compartilhem o conteúdo com suas recomendações.

Tenho também um link para o financiamento coletivo da produção deste conteúdo no Apoia.se . Nesse sentido, o apoio de vocês é super importante porque me ajuda a construir a base material que preciso para continuar produzindo conteúdo de pensamento crítico, ecológico e sistêmico para compartilhar.

Por fim, quem se interessar pela transição, pelo planejamento rural e por se conectar com uma rede de produtores e ativistas que estamos tecendo, meu próximo curso começa dia 27/04. Vem com a gente fazer parte das soluções! Clique aqui para fazer sua inscrição!

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