O que a paralização dos caminhoneiros, a dívida pública e o aquecimento global tem em comum? A atual crise político-financeira brasileira está diretamente relacionada com um fenômeno chamado de Pico do Petróleo; o ponto de produção máxima a partir do qual a extração passa a ficar cada vez mais cara e energeticamente inviável. Embora raramente sejam discutidos em conjunto, a crise financeira mundial, o aquecimento global e o pico do petróleo estão intimamente ligados.
Nota: O artigo que segue é inspirado, em parte, pelo trabalho do amigo e mentor Dr. Doone Wyborn. Doone foi pesquisador chefe na área de energias renováveis para o governo Australiano e tem sido um parceiro em cursos e palestras na Holos Regenerative Design.
O campo de interseção desses 3 fenômenos é o paradigma econômico do crescimento infinito. Também conhecido como PIBismo, esse paradigma prega que uma economia saudável requer crescimento constante. Nessa lógica o consumismo é estimulado para gerar indicadores econômicos positivos que na realidade não se traduzem em melhoria de qualidade de vida para a população e muito menos em um convívio harmonioso com Gaia. O petróleo é nossa principal fonte de energia e matéria prima. É o que sustenta grande parte do nosso projeto civilizatório, mas sua produção está em declínio inevitável. Para manter a economia em constante crescimento sem o apoio do petróleo como lastro energético, a maioria dos países também abriu mão do lastro material para suas moedas e passaram a usar a Moeda Fiduciária (dinheiro impresso sem seu equivalente em ouro ou metais preciosos nos bancos).
Vejamos então como o pico do petróleo, a crise financeira mundial, o aquecimento global e estão intimamente ligados.
Pico do Petróleo
Baseados nas projeções e trabalhos desenvolvidos pelo geólogo e geofísico Marion King Huppert, vários cientistas e ambientalistas tem alertado a população mundial sobre o inevitável declínio da produção do petróleo. Na década de 50 Huppert previu que se as tendências de consumo e ‘crescimento’ continuassem, a produção mundial de petróleo atingiria seu pico em 1994. O interessante é que vários trabalhos sobre o pico do petróleo, o de Huppert inclusive, foram comissionados pela indústria petroleira, ou seja, há muito tempo os magnatas do petróleo sabem que a crise mundial na produção é inevitável. Eles apenas escolhem esconder esse fato para previnir o investimento e pesquisa em energias renováveis.
Entretanto, há várias décadas os líderes governamentais e a indústria do petróleo já sabem que o declínio na produção é inevitável. O problema é que mesmo assim, muito pouco foi feito ao longo dos anos para preparar uma transição para outras fontes de energia. O petróleo é o que literalmente move nossas economias. A produção e distribuição de alimentos industrializados (o agronegócio) é totalmente dependente do petróleo. São os combustíveis fósseis que abastecem os tratores que aram, plantam e colhem os cultivos. Os adubos químicos, pesticidas e herbicidas são todos derivados de petróleo. E também são os combustíveis fósseis que mantém os padrões de mobilidade global (o trânsito internacional de produtos e pessoas). Para se ter uma idéia, a produção do que os cientistas chamam de petróleo convencional, ou seja, o que consome menos energia para ser extraído, atingiu o pico de produção global em 2005; 3 anos antes da crise financeira estadunidense de 2008. Os tipos de petróleo que restam são o petróleo de xisto e areia betuminoso ou as plataformas marinhas de exploração profunda. Essas formas de exploração tem um balanço energético muito baixo para manter as economias mundiais. Para deixar claro, ‘balanço energético baixo’ significa que a quantidade de energia gasta para encontrar e extrair é quase a mesma que existe na quantidade do petróleo encontrado, tornando essas opções cada vez menos economicamente viáveis.
Em 1972 o MIT – Instituto Tecnológico de Massachusetts – emitiu um relatório chamado Limites do Crescimento. O relatório se baseou em uma simulação computadorizada do crescimento exponencial da população e da economia com um suprimento limitado de recursos, uma vez que o planeta que habitamos é um só. Grande parte das projeções do relatório se revelaram bastante precisas. O que indica que já nos encontramos em uma fase de declínio na produção mundial de petróleo. Esse relatório foi a primeira crítica séria à nossa dependência quase completa aos combustíveis fósseis. Logo em 1973 os EUA enfrentaram uma crise de escassez severa. Em 1979, por conta da Revolução Iraniana e uma queda na produção global de petróleo, os EUA enfrentaram outra crise grave que afetou os preços dos combustíveis, as cadeias de distribuição de alimento e a economia como um todo. O então presidente Jimmy Carter instaurou uma política multi-bilionária de incentivo à pesquisa e uso das energias renováveis. Ronald Reagan veio instaurando as políticas neo-liberais e cortando 85% das verbas do programa de Carter.
Ainda hoje nos EUA tanto políticos quanto ambientalistas se arrependem pelo retrocesso. A diferença entre os EUA de 1979 e o Brasil de hoje é que os EUA entrou em crise pela falta de petróleo e o Brasil vive uma crise apesar de ser auto-suficiente nesse recurso. A semelhança está no fato de não estarmos fazendo o devido uso desse recurso para nos prepararmos para um declínio inevitável.
Dívida Financeira
Para manter as relações comerciais como de costume, ou seja, para manter uma economia que exige crescimento contínuo em um planeta com recursos naturais limitados, grande parte dos governos no mundo adotaram a Moeda Fiduciária e tem impresso bilhões de dólares todo ano sem nenhum valor real como lastro. Antes da adoção da Moeda Fiduciária qualquer nota emitida tinha seu valor equivalente em ouro ou outro metal precioso nos cofres dos bancos. É com uso dessa moeda sem valor real que os governos vem financiando a exploração de petróleo, carvão mineral, gás, mineração e outras corporações, assim como a abertura de linhas de crédito para a população com o intuito de manter a economia em crescimento linear.
O montante atual das dívidas pessoais, estatais e corporativas já não é mais sustentável. De fato, na maioria dos países a dívida pública praticamente se equipara, quando não ultrapassa, o PIB. Em 2017 no Brasil a dívida pública chegou a aproximadamente 75% do PIB. Como de costume, o aumento das dívidas públicas quase sempre são precedidos pelo declínio ou escassez de petróleo. No caso do Brasil, a escassez se deve ao fato de que a política neoliberal adotada pelo governo Temer fez com que a Petrobrás deixasse de refinar parte do petróleo explorado no Brasil, vendesse a matéria prima para corporações estrangeiras e comprasse a gasolina e o diesel mais caros de volta. Acordos espúrios que visam o sucateamento da Petrobrás para posteriormente vendê-la com preço subsidiado.
A crise financeira de 2008, que começou nos EUA, foi só a ponta de um iceberg em uma crise global que ainda está se desenrolando com formas e intensidades diferentes em vários países. A verdade é que por conta da necessidade de manter um crescimento contínuo em um planeta com recursos limitados as grandes potências mundiais passam a desestabilizar os governos dos países que possuem recursos naturais para explorá-los em benefício próprio. Foi assim com o Kuwait, Iraque e a Líbia, no oriente médio, com a Nigéria na África e não é diferente com o Brasil e a Venezuela na América Latina. A diferença é que em alguns países as grandes potências mundiais garantem seus acordos de exploração e comércio invadindo e guerreando e em outros o fazem por meio do lobby, espionagem e sabotagem. O Brasil é um caso clássico do segundo tipo de dominação. Em todos os momentos históricos brasileiros em que governos eleitos democraticamente criaram políticas de proteção do recursos naturais e comércio internacional e se articularam em relações simétricas com outros países, a política nacional foi desestabilizada de forma a instaurar relações de subserviência com as grandes potências e suas oligarquias. Foi assim com Jango em 1964 e é o que está acontecendo agora com a desarticulação do Mercosul e do BRICS.
Aquecimento Global
A propaganda governamental e corporativa somada ao estilo de vida desconectado da natureza, tem nos mantido cegos perante a gravidade da nossa situação. Tocamos as nossas sociedades como se a enorme quantidade de energia que precisamos para mantê-las fosse infinita. Nós levamos nossas vidas e um frenesi energético que rouba milhares de anos de energia solar presa na crosta terrestre em forma de petróleo. Esse modo de vide energeticamente inconsequente também rouba nossos filhos, netos e gerações futuras porque os impedem de fazer uso, ao menos de parte dessa energia para se prepararem para um futuro de declínio energético. O aquecimento global e o Antropoceno (a era geológica caracterizada pela sexta maior extinção em massa da história do planeta) são efeitos diretos dessa desconexão com a natureza e de um estilo de vida que degrada o meio ambiente. A poluição e os gases de efeito estufa liberados desde a revolução industrial já geraram um aumento de 1°C na temperatura média do planeta. Com essa variação já
percebemos catástrofes enormes e provavelmente irreversíveis como a morte da Grande Barreira de Corais na Austrália (link em inglês), o derretimento das calotas polares e das grandes geleiras. Como consequência desses derretimentos também estamos presenciando o aumento do nível do mar comprometendo várias cidades costeiras.
Todas essas mudanças climáticas certamente terão um impacto ainda maior no futuro acelerando a sexta extinção em massa disparada pelo rápido desenvolvimento da revolução industrial. Também é certo que teremos cada vez mais eventos climáticos extremos como grandes tempestades e furações. Ao mesmo tempo outras regiões do planeta terão seu clima oscilando entre períodos de seca extrema e chuva com enxurradas. Ainda assim o Acordo de Paris, assinado em Abril de 2016, foi bastante ardiloso ao dizer que os 193 países signatários “farão seu melhor para manter o aquecimento global bem abaixo de 2°C”. Digo ardiloso porque com apenas 1°C de aumento na temperatura média do planeta já estamos vivenciando catástrofes irreversíveis, como descrito acima. O acordo também é ardiloso no sentido de que não houve nenhuma resolução sobre como os países signatários manteriam suas emissões sob controle para manter o aumento de temperatura abaixo de 2°C, assim como não houve nenhuma menção de punição ou consequências para os países que muito embora “fizessem seu melhor” não conseguissem atingir a meta do acordo.
O que fazer?
Para a maioria das pessoas tomar conhecimento desses fatos é um choque. Para alguns o pensamento de como seus filhos e netos viverão no planeta nas condições que se desenrolam é assustador. A pergunta mais comum em cursos e palestras onde essas informações são compartilhadas é: “- E quanto tempo temos para para fazer alguma coisa, para nos prepararmos?”
Existem várias medidas que podemos adotar para minimizar nosso impacto na economia e no planeta. Mas a realidade é que precisamos discernir bem entre o que queremos ter e o que, de fato, precisamos ter para levar uma vida confortável e gratificante mas em harmonia com a natureza. Digo isso porque o primeiro passo em direção a mudança é impor limites ao consumismo. Estudos como o do David Holmgren (Crash on Demand), co-criador da Permacultura, revelam que se apenas de 10 a 15% da classe média mundial restringisse drasticamente seu consumo e se reorganizasse em economias de rede informal, isso já seria suficiente para quebrar o mercado financeiro global. Uma quebra planejada teria o benefício de uma transição de estilo de vida voluntário e ordenado, da relocalização das economias e da desaceleração do aquecimento global. Isso porque é exatamente e classe média mundial e seu consumismo que frequentemente esgota mais os recursos naturais e causa mais poluição gerando um ciclo vicioso que perpetua os problemas atuais.
Após refletir sobre o que realmente precisamos para viver bem fora da lógica do consumismo, segue outra medida muito importante que podemos tomar diante dessa situação que nos assoberba. Começar a prover mais das nossas próprias necessidades no que tange o abastecimento de água, produção de alimentos e energia e manejo de resíduos da maneira mais descentralizada possível. Uma lógica muito útil nesse contexto de ‘como agir’ foi compartilhada no artigo anterior sobre Os Cinco Estágios do Colapso, de Dmitri Orlov. Orlov nos aconselha e vislumbrar um mundo no qual não podemos mais confiar nas instituições públicas e privadas, no qual essas instituições já não suprem nossas necessidades. Esse exercício de imaginação é fácil no Brasil atual porque infelizmente já é uma realidade. Mas ele nos aconselha a partir daí e perguntar a nós mesmos “o que precisamos fazer para prover por nós mesmos, onde vivemos, o suporte necessário para nossas famílias e vizinhos?”.
Essa atitude de prover mais do que precisamos para viver pode desencadear ainda outra medida; a relocalização. Em outras palavras, encontrar um lugar onde nossos impactos no clima possam ser minimizados, onde a água é abundante, a terra mais propícia para a produção de alimentos e os vizinhos se identificam com essa maneira de pensar e agir. Nesse aspecto metodologias de desenho e abordagens como a Pemacultura, a Agroecologia, a Agricultura Sintrópica, etc. podem ajudar muito.
Os maiores entraves para a relocalização normalmente são culturais. Fazem parte do apego a um estilo de vida e valores que pouco servirão em um futuro de declínio energético. No entanto, para muitas pessoas a possibilidade da relocalização também é limitada pela questão financeira. Ainda assim podemos alcançar muitas mudanças positivas criando comunidades mais resilientes nos centros urbanos e cidades onde a planejamento é mais horizontal. A mudança mais importante é na nossa atitude. É nos tornar responsáveis pelas nossas necessidades. Aqui vale à pena ressaltar o trabalho do movimento Cidades em Transição.
Seja na cidade ou no campo, o importante é liderar com exemplo. É colocar nossa energia no mundo que queremos criar e não em combater o mundo que não queremos. Quanto mais mostrarmos que é possível viver uma vida prazerosa e gratificante suprindo mais das nossas necessidades de maneira descentralizada, mais pessoas nos seguirão. Como dizia Bill Mollison, co-criador da Permacultura:
A maior mudança que precisamos fazer é ir de consumo para produção, mesmo que em uma pequena escala em nossas hortas. Daí a futilidade de revolucionários sem hortas que dependem do próprio sistema que atacam, que produzem palavras e balas ao invés de comida e abrigo. (Bill Mollison)