O que a Permacultura não é – Um estudo resumido

A permacultura foi criada como resposta para um contexto social, econômico e ecológico específico – o de um colapso gravíssimo que já vem se desenrolando desde a revolução industrial.

Na medida em que ela ganha tração como ferramenta que fortalece os que se propõem a fazer a transição seja por opção ou já por necessidade, ela encontra resistência entre aqueles que tem dificuldade de aceitar que já vivemos uma crise ecológica, energética e econômica de proporções globais e sem retorno. 

Para a maioria das pessoas é difícil imaginar um projeto de civilização que não seja o capitalista sem que sejam remetidos a um dualismo limitante. O que surge imediatamente para a maioria é um medo do comunismo ou socialismo tanto pela maneira que se manifestaram no passado quanto pela distorção da propaganda ocidental.

Muitas dessas pessoas que não conseguem enxergar um viver que vá além do capitalismo tem se apropriado da permacultura trazendo incoerência e confusão para os que buscam nela uma ferramenta eficiente de transição. Esse trabalho busca abordar de maneira resumida porque essa apropriação acontece e o que podemos fazer para evitá-la.  

A permacultura foi criada como resposta a uma ideologia que já falhava com os seres humanos e a natureza na década de 1970. Nessa perspectiva ela se pautou, entre várias outras fontes, pelo relatório Limites do Crescimento. Um estudo acompanhado de uma simulação computadorizada lançado em 1972 e que desde aquela época já dizia que não podemos sustentar uma economia que exige crescimento infinito explorando os recursos limitados do planeta. 

Naquela época ainda vivíamos dentro da capacidade do planeta e as recomendações eram no sentido de usarmos os recursos restantes, principalmente os combustíveis fósseis para preparar uma transição para outros modos de viver com outras fontes de energia. Mais de 30 anos se passaram e grande parte das simulações se concretizaram:

    • O nível do mar subiu de 10 a 20 cm desde 1900. As geleiras que existem fora das calotas polares estão derretendo e a extensão e profundidade das camadas de gelo marinho no Ártico estão diminuindo durante o verão;
    • Em 1998 mais de 45% da população mundial já vivia com menos que $2 dólares por dia em média. Enquanto isso o 1/5 mais rico da população mundial já detinha 85% do PIB mundial e a distância entre ricos e pobres cada vez aumenta mais,
    • Em 2002 a FAO, departamento de agricultura da ONU, estimou que em torno de 75% das áreas de pesca já haviam chegado ao seu limite ou extrapolado sua capacidade. A indústria pesqueira do bacalhau no Atlântico Norte, antes sustentável por séculos, colapsou e muitas espécies foram extintas.
    • A primeira avaliação global de perda de solo superior por erosão, baseada em estudos de centenas de especialistas, descobriu que 38%, ou em torno de 1.4 bilhões de acres de terras agriculturáveis já foram degradadas.
    • 54 nações tiveram seu PIB per capita em declínio entre 1990 e 2001.

Esses são dados do site da Donella Meadows e alguns de seus colegas em uma avaliação 30 anos após o relatório original e já com quase 20 anos de publicação. Outro dado que não mencionei é que desde a década de 1970 que a dívida pública mundial SEMPRE CRESCE MAIS QUE A SOMA DOS PIBs de todos os países (Nate Hagens, 2012). 

A preocupação da permacultura com a sustentabilidade e o pico do petróleo se revela pela afinidade com o trabalho do ecologista Howard Odum e uma obsessão constante pela auditoria e eficiência energética dos sistemas propostos.

Do ponto de vista social, esse estudo revela as origens da permacultura no movimento anarquista, no sentido daquelas organizações sociais mais igualitárias e distribuídas onde todos participam diretamente das decisões. Revela também um planejamento deliberado de interações e atitudes que visam restaurar os tecidos sociais rompidos pela competitividade extremada do sistema vigente. 

É essa base anárquica que enxerga e visa a cooperação e não a competição como característica evolutiva que permitiu a humanidade chegar até aqui. Também é essa base que busca tornar governos e estruturas centralizadoras obsoletas por meio de um desenho de vida no qual somos mais responsáveis pela nossa moradia, energia, água, alimentos e resíduos gerados.

E aqui vale ressaltar o trabalho do Paulo Campos, ativista ambientalista do Crato, no Ceará, que tem garimpado as citações e referências ao pensamento anarquista na literatura da permacultura desde o Permacultura 1, o livro que lançou essa abordagem, até os mais atuais.

Então a gente vê como a ética da permacultura – o cuidado com a Terra (e aqui devemos ver ‘terra’ tanto como o terreno que ocupamos e produzimos até a Mãe Terra), o cuidado com o próximo e a partilha do excedente – é embasada em limites ecológicos e energéticos muito concretos já há muito tempo cientificamente comprovados.

E é a constatação desses limites ecológicos e energéticos que também rege o ‘desenho de comportamento’, os princípios eco-anarco-sociais que visam descentralizar e redistribuir a utilização de recursos e a tomada de decisões.

A Permacultura como ferramenta 

Não me considero um permacultor, um porta-voz e menos ainda um guardião.

Entretanto eu enxergo a permacultura como uma das ferramentas interdisciplinares com enorme potenial para auxiliar as pessoas a entenderem e desenharem sistemas sociais, energéticos e agroecológicos. Uma ferramenta para promover a alfabetização ecológica, noções de economia biofísica e integrar junto com outras abordagens o planejamento de áreas.

O Gerenciamento Holístico do ecologista Allan Savory (única abordagem que oferece uma estrutura para a tomada de decisão), a Agricultura Natural concebida pelo Fukuoka, , a agrofloresta sucessional que se desenvolve hoje no Brasil são ferramentas que uso. E aprendi a organizar essas ferramentas dentro da Escala de Permanência do Australiano P.A. Yeomans, muito pela influência de outro australiano, o Darren J. Doherty.

Entretanto, quando encontramos uma ferramenta boa, existe uma tendência de querermos explorar suas capacidades, seus limites, as várias maneiras como pode ser usada muitas vezes para além das finalidades para qual ela foi criada. Para explorar todas essas possibilidades é necessário um aprofundamento, uma análise ontológica mesmo, aquela que vai além da infinidade de definições existentes para revelar sua natureza plena e integral.

O que a permacultura não é e onde ela não deve ser usada

A permacultura tem como princípio o foco nas soluções e não ‘no problema’. Como recomendava Buckminster, o ideal é criarmos uma nova realidade que automaticamente torne o problema ou paradigma anterior obsoleto.

Esse princípio frequentemente guia a gente para que não gastemos tempo com interações pouco proveitosas seja pessoalmente ou na internet. Isso tem causado um vácuo de conteúdo que permite o surgimento de ‘expoentes’ por vezes mal informados e por outras mal intencionados para ocupar esse espaço. Isso acontece da mesma maneira que um sistema pouco diverso ou o solo descoberto convidam as chamadas ‘ervas daninhas’ para colonizar os nichos que ficaram abertos.

Por ter essa perspectiva e por entender a internet como uma oportunidade descentralizada de disseminação de ideias e alternativas eu me pego interagindo em situações nas quais muitos dos educadores mais velhos não interagem.

E foi essa preocupação com a permacultura como ferramenta, como meio de alcançarmos alternativas viáveis, que me motivou a escrever esse texto.

Não vejo a permacultura como fim, como um objeto ou instituição que precisa de normas ou guardiões. Mas toda ferramenta boa precisa estar afiada e pronta para cumprir suas funções da melhor maneira possível. Por isso tenho investido tempo interagindo em alguns grupos frequentemente compartilhando minha visão do que a permacultura não é.

A permacultura não tem religião!

E não é plataforma de lançamento de falsos Xamãs ou gurus. A permacultura não precisa de complementação religiosa ou espiritual! Ela reverencia a natureza e facilita nossa conexão com ela por meio da leitura de paisagem e ensinando seus princípios de uma maneira que cria pontes para que à partir do entendimento intelectual e experiencial possamos chegar a percepção mais profunda de que também somos natureza. É assim que ela cumpre sua função de religare, palavra latina que deu origem ao termo ‘religião’ e que significa uma reconexão com a natureza que nos cerca.

A permacultura não é vegetariana, nem Vegana!

Nem poderia ser pois ela tem como base a ecologia cultivada, as ligações de benefício mútuo e o entendimento das pirâmides tróficas para aumentar a eficiência energética nos sistemas projetados. Especialmente na pequena e média escalas que favorecem a agricultura familiar e pensando na grande maioria que vive em situação de risco social e alimentar.

Sua função, portanto, é entender e usar essa rede intricada com seus processos de adaptação, de competição e cooperação e de conexão presa-predador de forma a restaurar os ecossistemas onde atua enquanto provê para nós seres humanos.

Como princípio, a permacultura prega o foco na solução. De forma que se a carne produzida pela agroindústria é um dos problemas ambientais pelo qual alguns deixam de comer carne, a solução não é o veganismo ou vegetarianismo, é comermos a carne produzida de forma regenerativa. 

A permacultura nunca pregou o vegetarianismo ou veganismo como alternativas para o ativismo ambiental. As escolhas pessoais devem ser respeitadas. Mas apresentar o veganismo como ‘uma evolução’ na permacultura, na consciência ambiental e nos sistemas de produção regenerativos é uma distorção sem base na ecologia ou na teoria da abordagem que deve ser combatida.

Bill Mollison explicava isso muito bem e tanto seus livros quanto aulas gravadas tem registro desse posicionamento. David Holmgren e sua companheira Su Dennett levam sua propriedade, Melliodora, como um estudo de caso a longo prazo detalhando tanto a produção anual como as conquistas em direção a auto-sustentabilidade. Apesar de uma dieta majoritariamente ovo-láctea variadíssima, eles também comem carne de caça e dos frangos que criam.

A permacultura não é hippie! 

Pelo menos não no sentido atual onde as pessoas que negam “o sistema” terceirizam para os outros o financiamento de sua educação, bem estar ou oportunidade de experiências transcendentais. Para esses hippies o argumento é sempre “não ter recursos”, enquanto de alguma forma milagrosa não faltam recursos para as drogas de sua preferência, sejam elas quais forem… açúcar, café, álcool, cigarro, maconha, baladas, festivais, viagens… etc. 

Agora, no sentido original anticolonialista onde o movimento de abandono da sociedade de consumo é uma decisão minimamente coerente em busca da autonomia, como foi o caso de Gandhi na Índia contra o colonialismo Britânico, aí sim ela hippie.

Hippie no sentido de entendermos que devemos produzir mais do nosso alimento, das nossas roupas, cuidar mais da água que mantém nossa vida e de como lidamos com o lixo que geramos… No sentido de tudo isso ser um processo contínuo, uma direção, um norte e de que estamos juntos seguindo essa trilha, uns mais a frente, outros mais atrás e está tudo bem assim. Nesse sentido alguns podem classificá-la como “coisa de hippie”; e nesse caso isso é um elogio!

E por último…

A permacultura não é liberal, nem neoliberal e muito menos anarcocapitalista.

Todas essas ideologias enxergam a natureza como parte da economia e não a economia como parte da natureza. Elas endeusam a propriedade privada e justificam o acúmulo de privilégios a partir de uma pseudo-meritocracia. Essas ideologias são, portanto, incapazes de cumprir com os princípios éticos do cuidado com a terra, do cuidado com próximo e a da partilha do excedente. 

Embora haja exceções, via de regra a filantropia capitalista tem como objetivos principais a isenção fiscal e o marketing pessoal e social. Muito raramente os que se alinham com qualquer versão da ideologia capitalista conseguem se alinhar com “a partilha do excedente”. E incluir a partilha do excedente como ética fundamental foi a maneira que os co-criadores encontraram de embutir na permacultura a distribuição de renda, terra ou qualquer outro tipo de excedente e garantir que a abordagem e o movimento fossem sempre anarco-eco-socialistas e estivessem sempre alinhados com a justiça social e não com a caridade.

Nada impede que pessoas de qualquer inclinação usem práticas sustentáveis ou regenerativas, mas como muito bem explica minha amiga Camila Bianchi, “elencar ecotécnicas não é fazer permacultura” (comunicação pessoal). 

Ações, práticas e projetos tocados por pessoas alinhadas com qualquer versão da ideologia vigente não constituem a prática da permacultura pois não conseguem conceber a partilha de qualquer que seja o excedente gerado.

Portanto, a permacultura é política! Porque, de novo, como a Camila coloca muito bem, quando decidimos como usamos e ocupamos o solo e outros recursos naturais, como planejamos de forma integral os fluxos e ciclos, como aliamos conhecimentos tradicionais com tecnologias contemporâneas são todas decisões políticas. 

E no caso da permacultura são decisões políticas com bases eco-anarco-socialistas muito bem documentadas na literatura e exemplo dos co-criadores. Agora…

Como difundir amplamente a permacultura como alternativa para um novo modo de ocuparmos o planeta? Como garantir que a abordagem e o movimento social se mantenham fiéis às suas bases ideológicas? 

A resposta curta para a primeira pergunta é: estudando e praticando da forma mais coerente possível a literatura e o exemplo deixado pelos seus co-criadores e fazendo cursos de formação (PDCs) que seguem o currículo original também deixados pelos co-criadores.

A resposta curta para a segunda pergunta é: não há como ter essas garantias! 

A apropriação da permacultura por pessoas e movimentos totalmente desalinhados com ela como o liberalismo, o anarcocapitalismo e outros absurdos como o MGTOW (os Homens Seguindo Seu Próprio Caminho) é a prova de que não há garantias nesse sentido.

Apresentar a permacultura como alternativa ampla, autônoma, replicável e com difusão em redes distribuídas é um desafio de proporções gigantescas.

O sistema vigente apodrece as relações humanas, rompe com as fábricas do tecido social e assassina a natureza e não existe uma solução única para situações complexas.

Mas a permacultura já foi criada como solução para esses problemas e com o intuito de ser uma alternativa que pudesse se difundir rapidamente. Quando o Bill Mollison autoriza qualquer pessoa que tenha um certificado de um PDC nas mãos a ensinar tão logo termine o curso e se julgue apto, ele está compartilhando o excedente em autoridade que ele tinha. 

Mais ainda, ele está se valendo dos princípios anárquicos para criar uma rede onde o poder e o conhecimento estão distribuídos igualmente. Ele está apoiando a criação de uma rede que quando começa e se replicar, faz isso de maneira rizomática e se estabelece sem centro definido, dificultando portanto qualquer iniciativa de combatê-la.

É óbvio que a preocupação com a qualidade é necessária e importante. Mas se nos posicionamos como guardiões não estaremos sendo coerentes com a origem e princípios anárquicos da permacultura.

As pessoas alinhadas com ideologias capitalistas tem se apropriado da permacultura e de sua narrativa, como uma ‘erva daninha’ que coloniza um espaço onde o solo está exposto, como disse acima, mas essa ‘colonização’ não é regenerativa. A melhor maneira de salvaguardarmos a qualidade da permacultura ensinada é ocupando os espaços disponíveis com conteúdo POLITIZADO de qualidade. 

É tendo planos detalhados de multiplicação e apoio para novos ativistas, cada um na sua vocação. Uns ensinando, outras produzindo no campo, outras desenvolvendo tecnologias apropriadas, outras projetando, e alguns fazendo um pouco de tudo. 

Depois de insistir na necessidade de sucessão do movimento já há um tempo, eu fiquei muito feliz de ver o David Holmgren em uma entrevista recente dizer que:

“Sucessão é enormemente difícil, especialmente entre pensadores e ativistas ambientalistas radicais e individualistas. … Aprender como navegar essas mudanças que inevitavelmente chegarão para todos nós enquanto envelhecemos é um caminho muito importante para o futuro. E é muito importante no contexto da cisma crescente em equidade entre os jovens que não tem acesso à terra e as pessoas mais velhas que tem propriedades simplesmente por conta do acaso da história, das bolhas imobiliárias e outras dinâmicas que não tem nada a ver com nosso trabalho duro ou o que fizemos sensivelmente. Então esses assuntos são delicados e eu não acredito que existam respostas fáceis, mas [a sucessão] é central no pensamento de vários pioneiros da permacultura, no sentido de como o trabalho deles pode continuar de alguma forma” (Entrevista para o Gardening Australia, 07/02/2020)  

Eu só acrescentaria que a partilha da autoridade como excedente acumulado, como disse antes, também é central.

Então, em resumo, como possibilidades para que alcancemos uma massa crítica em tempo de preparar Santuários de Sanidade Mental e Ecológica (que é como eu venho chamando esses espaços), em tempo de salvar a humanidade da extinção iminente eu recomendaria:

    • Facilitarmos o acesso dos jovens, principalmente os de baixa renda, à permacultura com vistas na formação de agentes locais,
    • A construção de comunidades de prática com foco no fomento (e não vigília),
    • A produção de conteúdo multimídia de qualidade amarrando as ligações entre as bases ideológicas e as técnicas utilizadas, 
    • O hábito deliberado de endossar o trabalho dos novos talentos, de estabelecer referenciação cruzada entre as diferentes gerações,
    • O enfrentamento direto da apropriação com base na literatura e exemplos dos co-criadores.

Eu realmente acredito que existem muito mais alternativas, mas essas são algumas das que eu vejo mais claramente se alinhando com a intenção original dos co-criadores, na minha interpretação é claro, e que podem explorar melhor o espaço da internet para difundir uma permacultura de qualidade.

Muito obrigado!
Eurico Vianna

Nota de edição 19/02/20 – À partir do feedback de amigos e colegas fiz algumas edições no texto. Uma das dificuldades com esse texto é que foi produzido para guiar uma fala e não como artigo. Na medida do possível irei adaptando as versões.
– O título foi alterado trocando ‘ontologia’ por ‘estudo’ por sugestão do Bernardo do grupo ‘Só Permacultura’. Segundo ele, filosoficamente ‘ontologia’ não é aplicada quando a narrativa escolhida é definir pelo que não é. Embora na sociologia esse recurso seja usado, achei válida a sugestão.
– A Suzana, educadora e ativista do Yvy Porã em SC, sugeriu explicar melhor os conceitos de ecologia cultivada. Também achei válida a sugestão.  

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