O ecomodernismo ou tecno-fix, como também é chamado, é a ideologia que prega que os avanços tecnológicos e uso de energias renováveis nos permitirão mitigar o impacto ambiental e suprir a demanda energética e de recursos naturais da sociedade de consumo. O autor, ambientalista e ativista australiano Dr. Ted Trainer, no entanto, diz que o tecno-fix não passa de crença ou otimismo descabido e que a solução para vivermos em harmonia com Gaia está em reorganizarmos nosso modo de viver em Ecovilas inteligentes e ligadas em rede. Esse ‘Caminho Mais Simples’ forneceria estilos de vida saudáveis, trabalho e educação com padrões de consumo bastante reduzidos.
O Dr. Ted Trainer (https://en.wikipedia.org/wiki/Ted_Trainer) foi professor da Universidade de Sydney, na Austrália, por vários anos e atuou nas área das ciências sociais, educação e limites do crescimento. A teoria de mudança social proposta por ele é conhecida como “O Caminho Mais Simples” (em inglês The Simpler Way). Ela se se baseia em um conjunto de ideologias e diretrizes que, em grande parte, já existem separadamente. Juntos o minimalismo, a redução do consumo, a reorganização dos grandes centros urbanos em unidades menores, a relocalização das economias e a promoção de ecovilas inteligentes e ligadas em rede fazem parte do “Caminho Mais Simples”.
O trabalho de Trainer é pertinente porque aponta soluções simples para uma crise energética, social e cultural que já assola vários países no mundo. O maior desafio, o próprio Trainer reconhece, é a mudança de atitude mental, é nos libertarmos das amarras ideológicas da sociedade de consumo. Mas parafraseando Buckminster, “para mudar alguma coisa, construa um novo modelo que torne obsoleto o modelo existente”. E esse novo modelo também começa por admitirmos as limitações e ineficiências do atual.
O texto que segue é uma tradução livre de um artigo do Dr. Ted Trainer chamado “Mas os avanços tecnológicos não podem resolver o problema?”, publicado em Agosto de 2016 e que pode ser encontrado em inglês nesse link.
A análise do relatório “Os Limites do Crescimento” argumenta que a busca pelo estilo de vida dos países ricos e pelo crescimento econômico são as causas principais dos problemas globais alarmantes que estamos criando.
Os níveis de produção e consumo que estamos estabelecendo no mundo estão longe de ser sustentáveis. Não há nenhuma possibilidade de manutenção desses níveis, muito menos implementá-los para todos os povos do mundo. Nós, nos países ricos, precisamos mudar adotando níveis de consumo muito inferiores. [Isso também é válido para as classes média e alta do Brasil. Para mais detalhes em inglês visite esse link]
Em nossa situação atual, frequentemente o argumento contrário a análise do relatório “Limites do Crescimento” é de que a tecnologia resolverá os problemas e nos permitirá seguir vivendo estilos de vida cada vez mais ricos em economias de crescimento constante. Em tempos mais recentes essa fé “tecno-fix” tem sido definida como “ecomodernismo” (Argumentos pró-ecomodernismo podem ser encontrados nos autores Asaef-Adjaye, 2016, e Blomqvist, Nordhaus Shellenbeger, 2015. Para uma crítica desses argumentos veja Trainer 2016a.)
Entretanto, as evidências contrárias apontam para o fato de que os avanços tecnológicos não nos ajudarão a resolver os maiores problemas globais que enfrentamos e que para construirmos uma sociedade sustentável e justa é preciso fazermos uma transição para algum tipo de “Caminho mais Simples”.
Poucas pessoas percebem a magnitude dos problemas que enfrentamos
Segue abaixo alguns exemplos do quanto excedemos em muito os limites do crescimento e, portanto, do quão enormes os avanços “tecno-fix” teriam que ser para resolver os problemas.
- Partindo do pressuposto que não vamos mais degradar e perder terras férteis, a quantidade de terra produtiva per capita em 2050 seria de 0.8 hectares. A área de terras férteis que supre cada australiano com seu estilo de vida hoje é de 8 hectares. Isso significa que na Austrália nós estamos 10 vezes acima de um limite sustentável e que não há a menor possibilidade de que toda a população mundial chegue a padrões minimamente parecidos com os nossos. [Nota do tradutor: Vale ressaltar que no Brasil as classes mais altas tem um consumo equivalente ao dos países mais ricos e portanto o impacto e lógica do argumento ainda se aplica a grande parte da população brasileira.]
- Quase todos os recursos são escassos ou estão diminuindo, muito embora um número pequeno de pessoas no mundo estejam usando a maioria desses recursos.
- Muitos dos ecossistemas globais se encontram em rápido e alarmante declínio.
- O Fundo Mundial para Natureza (https://pt.wikipedia.org/wiki/World_Wide_Fund_for_Nature) estima que hoje usamos os recursos naturais em uma proporção que exigiria um planeta e meio para supri-los de forma sustentável (WWF, 2014).
Somemos a isso o absurdo do crescimento econômico
Os fatos e estatísticas apresentados aqui, assim como muitos outros apresentados em outros estudos, apenas indicam a magnitude dos problemas causados pela produção e consumo excessivos. Mas precisamos somar a essa situação alarmante o fato de que nossas sociedades são comprometidas com o crescimento rápido e constante dos “padrões de vida” e do PIB (e.g. o crescimento econômico é o objetivo supremo).
Se nós, australianos, tivermos um crescimento anual constante de 3% até 2050 e se até lá os 9.7 bilhões de habitantes do planeta atingirem nosso “padrão de vida”, o montante anual da produção econômica no mundo seria 20 vezes maior do que é hoje. Entretanto a quantidade atual de produção e uso de recursos naturais já é absurdamente insustentável.
Estatísticas e projeções enormes como essas definem a magnitude do problema para os que acreditam que o avanço tecnológico possa prover riqueza e crescimento para todos
O otimismo tecno-fix baseado em crenças
O otimismo tecno-fix deveria ser desafiado a mostrar com detalhes quais são as bases para que aceitemos que as soluções serão encontradas para cada um dos problemas enormes que enfrentamos. O quê, mais precisamente, vai resolver o problema da perda de biodiversidade, de falta de água, de escassez de fosfato, do colapso da população de peixes nos oceanos, etc.? E como esses avanços serão possíveis? Ao fazer essas perguntas nós normalmente vemos que a crença no tecno-fix não passa de fé e que praticamente não há evidencias para sustentá-la.
Existem muitos avanços espantosos sendo conquistados na medicina, astronomia, genética, física sub-atômica, tecnologia e informática, etc. mas esses avanços não são centrais nessa discussão. O assunto central aqui é se há uma razão para acreditarmos na probabilidade dos avanços tecnológicos resolverem os problemas ambientais e de depleção de recursos causados pelos estilos de vida dos países ricos. O caso contra essa crença é muito grande.
Algumas evidências de avanços tecnológicos nos campos relevantes.
Primeiramente, não devemos pressupor que avanços gerais, rápidos, em larga escala e contínuos estejam sendo feitos nas áreas que envolvem uso de materiais e energia. Ayres (2009) ressalta que por muitas décadas a eficiência na produção de eletricidade e combustíveis, de motores elétricos, de amônia, ferro e aço atingiu platôs. Ayres relata que a eficiência de equipamentos elétricos, por exemplo, mudou muito pouco no último século. Além disso, Ayres também aponta que não houve melhora significativa na eficiência energética da economia estadunidense desde 1960. (Ayres, 2009; p. 128-9.)
A maioria dos índices de progresso tecnológico, eficiência e produtividade mostram um declínio contínuo a longo prazo e os ganhos anuais estão agora perto de zero. Além disso, temos percebido que muito do crescimento em produtividade que tem acontecido tem sido devido ao crescente uso de energia e não aos avanços tecnológicos. A tendência da produtividade associada com esse fator central e importante, a energia, também está em sério declínio. Esse declínio pode ser evidenciado em dados coletados em estudos longitudinais sobre as proporções de EROEI (Energia Retornada na Energia Investida). Há várias décadas atrás era possível produzir até 30 barris de petróleo com a energia contida em apenas 1 barril. Hoje essa proporção do EROEI está em torno de 18 barris e caindo.
“Mas e a Lei de Moore que mostra que a potência dos processadores de computador tem delineado uma curva em crescimento constante”. Claro, isso acontece em algumas áreas, mas a tendência na área de Tecnologia e Informática é altamente atípica. Vale ressaltar também que o advento dos computadores não fizeram diferença significativa na produtividade da economia. De fato, a queda recente na produtividade enquanto a área de TI estourou é chamada de “Paradoxo da Produtividade”.
O assunto crucial do crescimento econômico e o desacoplamento do uso dos recursos naturais
O elemento fundamentalmente importante no paradigma tecno-fix ou ecomodernista é a crença ou argumento de que a demanda por recursos e o impacto ecológico podem ser ‘desacoplados’ do crescimento econômico. Em outras palavras esse argumento proclama que novos avanços tecnológicos permitirão o crescimento contínuo da economia assim como o aumento dos “padrões de vida”, da renda e do consumo enquanto o uso de recursos naturais e os danos ao meio ambiente são reduzidos para níveis sustentáveis. Toda a evidência disponível parece mostrar inequivocamente que temos tido muito pouco ou nenhum sucesso nesse desacoplamento. (Para mais de 30 estudos sobre desacoplamento, em inglês, visite esse link)
- O estudo de Weidmann et al. (2014) argumenta que “… a produtividade baseada em recursos tem caído nas nações desenvolvidas.” E que “não houve uma melhora, sequer, na eficiência econômica do uso do metal.”
- Giljum at al. (2014, p.324) relata que nos 10 anos que antecederam a crise financeira global o valor do dólar extraído de cada unidade mineral não melhorou em nada. “Em um nível global, não conseguimos nem mesmo um desacoplamento relativo.”
- O relato de Diederan (2009) sobre a produtividade do esforço na descoberta de minérios é ainda mais pessimista. Entre 1980 e 2008 a taxa de descoberta anual caiu de 13 para menos de 1, enquanto os custos de prospecção saltaram de $1.5 bilhões por ano para $7 bilhões por ano. Isso significa que a eficiência dos custos de prospecção caiu aproximadamente 100%. Estatísticas recentes sobre a exploração do petróleo são semelhantes, na última década os investimentos em prospecção triplicaram sem que houvesse aumento nas descobertas de novos poços.
Todas essas fontes e dados indicam a completa falta de suporte para a fé dos que aderem ao ecomodernismo ou ao tecno-fix
Tanto o tecno-fix quanto o ecomodernismo assume que um desacoplamento massivo é possível. Por exemplo que em 2050 a demanda por energia, materiais e serviços ecológicos associada a $1 do PIB poderá ser reduzida em torno de 30 vezes. Aparentemente na há nenhuma literatura ecomodernista que tente fornecer um bom argumento defendendo que um desacoplamento geral e absoluto seja possível, muito menos na escala necessária.
(NOTA: No texto original Trainer alega que tentou contato várias vezes com os autores ecomodernistas sobre o assunto, mas que não obteve resposta)
Repare, mais uma vez, que o patamar sobre o qual os adeptos do tecno-fix precisam construir não é dado pelas presentes condições de recursos disponíveis, mas um de deterioração acelerada. Por volta de 2050 as minas sendo exploradas terão muito menos minérios do que tem hoje.
Obviamente, a pesquisa e o desenvolvimento do aprimoramento das coisas é importante e na visão do Caminho Mais Simples nós teríamos na verdade mais recursos destinados à pesquisa aplicada e útil para o social do que temos agora [ênfase no original]. Nesse cenário, mesmo com um PIB inferior, teríamos mais destinado à pesquisa porque poderíamos redirecionar o enorme desperdício de recursos que acontece na sociedade de consumo capitalista. De toda forma é um erro muito grave pensar que desenvolver melhores tecnologias é o caminho para resolvermos os sérios problemas globais que enfrentamos hoje. Esses problemas estão sendo criados pelo nossa determinação de viver estilos de vida que exigem demandas por recursos impossíveis de serem atingidas, assim como pelos sistemas associados a essa determinação; o mais óbvio deles sendo a economia que exige crescimento o tempo todo.
O objetivo principal do Caminho Mais Simples é mostrar que podemos facilmente criar comunidades alternativas que promovam uma qualidade de vida alta para toda a população do planeta enquanto reduz dramaticamente os impactos ambientais e de recursos no planeta. O padrão básico de assentamento e habitação seria em torno de uma economia local, autossuficiente, autorregulada e cooperativa que use majoritariamente recursos locais para suprir suas necessidades. As satisfações pessoais viriam em grande parte de buscas não materiais como a produção de alimentos, artesanato, o ofício de vocação e a contribuição para o funcionamento da comunidade em mutirões e comitês.
Há centenas de anos nós sabíamos como produzir alimentos, casas, catedrais, roupas, concertos musicais, obras de arte, vilas e comunidades que não eram apenas ‘boas o suficiente’, eram lindas. Fazíamos tudo isso usando pouco mais que ferramentas manuais, artesanatos e ações e arranjos em cooperativa. É óbvio que devemos fazer uso de computadores quando eles fazem sentido. Mas nós não precisamos de alta tecnologia para projetar e aproveitar o tipo de comunidade com altíssima qualidade de vida que o mundo inteiro poderia compartilhar.
Para um texto mais detalhado sobre a visão do Caminho Mais Simples para uma sociedade sustentável e satisfatória visite esse link.
Para uma discussão mais detalhada da fé no tecno-fix veja esse link.
Referências:
Asafu-Adjaye, J., et al., (2015), An Ecomodernist Manifesto, April, www.ecomodernism.org
Ayres, R. U., (2009), The economic Growth Engine, Cheltenham, Elgar,.
Blomqvist, L., T. Nordhaus and M. Shellenbeger, (2015), Nature Unbound; Decoupling for Conservation, Breakthrough Institute.
Diederen, A. M., (2009), Metal minerals scarcity: A call for managed austerity and the elements of hope, TNO Defence, Security and Safety, P.O. Box 45, 2280AA Rijswijk, The Netherlands.
Giljum, S., M. Dittrich, M. Lieber, and S. Lutter, (2014), “Global Patterns of Material Flows and their Socio-Economic and Environmental Implications: A MFA Study on All Countries World-Wide from 1980 to 2009”, Resources, 3, 319-339.
Wiedmann, T. O., H. Schandl, M. Lenzen, D. Moran, S. Suh, J. West, and K. Kanemoto, (2015), “The material footprint of nations”, PNAS, 6272 -6276.
World Wide Fund for Nature, (2011), The Energy Report, WWF and Ecofys.