Seaspiracy e veganismo como panaceia

Em um exercício de pensamento crítico, sistêmico e ecológico, não há solução simplista para problemas complexos. É nesse sentido que eu argumento que o veganismo não é uma panaceia para os problemas ambientais e os vários artigos que compartilho abaixo deixam claro que frequentemente a agenda de conversão deste movimento distorce e esconde dados, testemunhos e informações de acordo com sua agenda.

A ideia aqui não é opor o veganismo, como já disse em vários artigos e vídeos, o veganismo é um direito inalienável. O erro é querer elevá-lo a um dever ambiental.

O filme já começa mentindo e dissimulando pela sinopse:

Apaixonado pela vida nos oceanos, um cineasta resolve documentar os danos causados pelo ser humano às espécies marinhas e acaba descobrindo uma rede de corrupção global”.

Ali Tabrizi, o diretor e apresentador do filme, pode até ser apaixonado pela vida nos oceanos, mas o filme já foi concebido desde o roteiro para ser uma propaganda de conversão para o movimento. Inclusive uma busca rápida na internet revela que Seaspiracy já foi idealizado para ser uma continuação do Cowspiracy e, inclusive, tem o mesmo produtor, Kip Andersen.

Eu deixo minhas considerações para o final e passo agora a citar dois especialistas na área, para deixar claro a gravidade desse tipo de manipulação.

Vou citar o professor Daniel Pauly da University of British Columbia. Daniel, que é doutor em biologia marinha, foi nomeado um dos cientistas da American 50 – a lista anual da famosa revista reconhecendo atos notáveis ​​de liderança em ciência e tecnologia em 2020. Pauly é o único cientista na lista de uma universidade canadense.

Pauly tem estudado o declínio da pescas dos mares por mais de 25 anos. Entre suas principais realizações estão dois dos projetos pesqueiros mais importantes do mundo. FishBase é um banco de dados global embalado com informações sobre mais de 27.000 espécies de peixes. Ecopata é um programa de modelagem de ecossistema que prevê como as populações de peixes podem responder a várias pressões. Entre suas muitas homenagens, Pauly foi eleito para a Royal Society of Canada em 2003.

Segundo Pauly “Seaspiracy, a inspiração marítima, faz mais mal do que bem. Ele pega a questão muito séria do impacto devastador da pesca industrial sobre a vida no oceano e a prejudica com uma avalanche de falsidades. Também emprega técnicas de entrevista questionáveis, usa clichês anti-asiáticos e culpa a Comunidade de Conservação do Oceano, ou seja, as próprias ONGs que tentam consertar as coisas, ao invés das corporações industriais que realmente causam o problema.”

Mais importante, ele distorce a narrativa sobre a destruição do oceano para apoiar a ideia de que nós – os assinantes da Netflix em todo o mundo – podemos salvar a biodiversidade do oceano ao nos tornarmos veganos. Ao fazer isso, Seaspiracy mina seu tremendo valor potencial: persuadir as pessoas a trabalharem juntas e pressionar por mudanças nas políticas e regras que irão controlar uma indústria que frequentemente infringe a lei impunemente.”

Ainda segundo Pauly, o Seaspiracy tem problemas com os fatos.

Um exemplo“, Pauly afirma, “é a afirmação de que os oceanos estarão “vazios” em 2048 se continuarmos a pescar como fazemos agora.”

Esta afirmação é uma interpretação errônea de um artigo científico já desatualizado. Seus autores sugeriram que, em 2048, todas as populações de peixes exploradas no mundo estariam tão esgotadas pela pesca que produziriam menos de 10 por cento de suas capturas historicamente mais altas. Existem milhares dessas populações de peixes em todo o mundo, que podem ser consideradas como tendo “colapsado”, mas eles não desapareceram e podem se recuperar. Na verdade, é disso que se trata a gestão atual da pesca em países como os Estados Unidos, que enfatiza a reconstrução de estoques ”.

O irônico aqui é que o Boris Worm, doutor, biólogo marinho e autor do artigo mais citado no Seaspiracy agradeceu publicamente as críticas feitas ao filme pelo colega Daniel Pauly.

Sobre as estratégias e desonestidades do filme, Pauly conclui que “Quando você opta por uma política absurda [no caso o veganismo como única opção], você deve derrubar as alternativas, por mais sensatas que sejam. E assim, Seaspiracy ataca várias das ONGs na conservação dos oceanos, incluindo a Plastic Pollution Coalition e a Oceana.”

E por fim Pauly recomenda: “Se Seaspiracy o alertou sobre os problemas que os oceanos enfrentam, entre em ação e junte-se a uma ONG que está lutando por mudanças. Quanto a este filme, um título melhor seria Maria Antonieta Vai Para o Mar.

Para quem não sabe, Maria Antonieta era conhecida como ‘a louca’.

Segue o link para o artigo O que o Seaspiracy da Netflix entende errado sobre pesca, explicado por um biólogo marinho no Vox.

No Brasil também temos especialistas gabaritados alertam para o desserviço prestado pelo filme.

Cintia Miyaji é bióloga, mestre e doutora em Oceanografia pelo Instituto Oceanográfico da USP. Atualmente Cintia trabalha no fortalecimento da cultura do consumo responsável de pescado no Brasil, através da atuação como consultora na empresa que fundou em 2018, a Paiche.

Cintia também escreve um blog o “Bate papo com Netuno – sua comunicação com o mar e a ciência”, nele ela escreveu o artigo Seaspiracy, a armadilha das meias verdades.

Cintia explica que “embora os problemas apresentados pelo documentário sejam exatamente aqueles que me incomodam todos os dias, como a depleção dos estoques e a sobrepesca, a pesca ilegal, o impacto sobre espécies ameaçadas, as redes fantasma, os descartes e desperdícios, a aquicultura mal manejada, a violação dos direitos humanos, entre tantos outros, Seaspiracy incentiva o público a acreditar que ele tem o poder de mudar esses cenários de horror através de uma solução simplista… parar de comer peixe. E o argumento mais explorado é o de que não há uma forma confiável de se definir uma pesca como sustentável.”

Cintia lamenta que as críticas científicas e embasadas feitas ao filme “jamais alcançarão nem uma pequena fração daqueles que assistiram ao documentário, mas encontrarão eco e repercussão nos meios envolvidos com a pesquisa e a cadeia da pesca.

Ela explica em seguida como o filme leva tantos influenciadores e ativistas a compartilhar as informações falsas e elogiar o filme.

Seaspiracy usa uma estratégia muito bem pensada e arquitetada, de empoderar o espectador (aquele específico do perfil do assinante da Netflix), e dar a ele a sensação de que ao final do filme, uma atitude decorrente de uma decisão sua, consciente e legítima, vai contribuir para alterar as situações que o fizeram se sentir tão mal durante o documentário. Então, ao final, você tem que estar convencido de que não comer pescado é a solução, porque é a única que está ao seu alcance individualmente.

Mas como não existem soluções individuais para problemas sociais, tão pouco soluções simplistas para problemas complexos, Cintia alerta: “Não estamos em condições de aprofundar as diferenças e aumentar as distâncias. Nossa ação conjunta é necessária e urgente. O planeta, o oceano e a humanidade precisam de ações que os preservem. Ajude-nos a melhorar a comunicação entre as pessoas, no seu círculo social, na sua rede de contatos, na sua área de influência, orientando e disseminando informações de fontes seguras e confiáveis, nutrindo, treinando e até desafiando o senso crítico dessas pessoas. Leia, divulgue e apoie iniciativas como o Bate-Papo com Netuno!

O final, o filme deixa duas mensagens claras, como explicam os especialistas Danieal e Cintia: 1) parar de comer pescados e 2) substituir os pescados pelas produtos industrializados disponibilizados nos supermercados.

Entretanto, se o modo de produção pode estar a serviço da regeneração das áreas anteriormente degradadas, da qualidade de vida das pessoas e da economia local, qual seria o problema do pescado ou da carne?

E é aí entra a em dissonância cognitiva da agenda de conversão vegana porque usa argumentos ambientais, mas o foco principal é o antiespecismo.

A recomendação para que todos parem de comer peixe, não está embasada em dados, como mostram os especialistas, mas no antiespecismo. Desta forma deixam de contextualizar que para a grande maioria das pessoas no planeta essa não é uma opção segura. Deixam de recomendar a articulação social e política de base, tão necessária, e levam as pessoas a acreditar que uma solução individual tem eficiência para problemas sociais, o que sabemos ser uma falácia.

Também não se preocupam em investigar e contextualizar o impacto ambiental das altenativas ultraprocessadas à baseas plantas, porque na realidade, os argumentos ambientais, nutricionais e espirituais servem só de apoio ao antiespecismo (e são frequentemente distorcidos para favorecer o foco principal).

Como também explicam os cientistas que fazem as críticas fundamentadas a essas peças da publicidade veganas, o movimento perde credibilidade e a oportunidade de inspirar cooperação e articulação políticas nas bases toda vez que coloca o antiespecismo e as soluções individuais à frente da articulação popular e da complexidade dos diversos contextos humanos no planeta.

Praticamente todos os “documentários” (eu chamaria de propaganda) são chamados a responder por “erros” (acho que é manipulação de dados) depois que são lançados.

O cowspiracy é um desserviço para agricultura familiar regenerativa no mundo. Vários cientistas já desmascararam os dados distorcidos.

O Game Changers, embora tenha mais embasamento, ainda apresenta evidências anedóticas como científicas e “esquece de dizer que o diretor tem 140 milhões de dólares investidos na indústria das carnes falsas.

O Seaspiracy incorre nas mesmas distorções e manipulações, como apontam os especialistas aqui citados.

Se o foco for no antiespecismo, o movimento se torna hegemônico e dá espaço para as corporações das monoculturas e carnes falsas (feitas com produtos da monocultura). Isso porque o mais importante (para o antiespecismo) é buscar alternativas aos produtos de origem animal e de onde vem estas alternativas e os impactos ambientais de sua produção nunca é questionado.

Se lutarmos juntos pela soberania alimentar, que abarca a pluralidade sociocultural, a necessidade de uma agricultura familiar regenerativa e da reforma agrária, o direito ao veganismo está garantido, mas dentro de um paradigma que abarca as escolhas de todos.

Nota: Agradeço a amiga e também doutora em biologia marinha Caroline Codornis por compartilhar o artigo da Cintia e ao perfil Movimento do Onivorismo Ético pelo esforço no esclarecimento das desinformações espalhadas pela agenda de conversão.

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