Se a poluição é o preço do desenvolvimento, estamos dispostos a pagá-lo.
Esta foi a postura do governo brasileiro na primeira conferência mundial sobre meio ambiente, ocorrida em Estocolmo, em 1972. Há quase meio século, portanto, no frenesi de seu milagre econômico, o Brasil ficou marcado não só como grande poluidor, mas como interessado em pagar qualquer preço pelo desenvolvimento (e disso a imensa dívida externa contraída neste período não deixa dúvidas).
Naquela época, não havia Relatório Brundtland e ninguém ainda havia pensado no tripé econômico, social e ambiental de um tal conceito de desenvolvimento sustentável. Não havia Agenda 21, nem Protocolo de Kyoto, nem muito menos Acordo de Paris. O mundo estava ensaiando a elaboração de acordos internacionais sobre meio ambiente. Mesmo assim, a postura radical brasileira foi suficiente para a proposição de sanções internacionais importantes, cobrando do governo federal a implementação de uma política ambiental.
E foi assim que, nove anos depois, em 1981, criamos a nossa Lei no 6.938/81 – a Política Nacional de Meio Ambiente. Paradoxalmente, ainda sob regime militar criamos uma das legislações ambientais consideradas, até hoje, das mais progressistas e mais capazes de associar conservação da natureza e desenvolvimento. E, literalmente (e infelizmente), apenas para inglês ver.
Os ingleses e o mundo inteiro viram e nos livramos das sanções, muito embora a falta de intenção de implementar a tal política, manifestada pela quase inércia de sua regulamentação até o fim do regime militar. Porém, querendo ou não, tínhamos então uma lei federal sobre o tema, que ensejava sua implementação.
Em 1988, a maior parte dos princípios e diretrizes da Política Nacional de Meio Ambiente encontraram reflexo em dispositivos da nova Constituição Federal. Todavia, faltavam instituições que viessem a implementar tais dispositivos. Então, logo em 1989, cria-se o IBAMA e nos primeiros anos da década de 90 foram criados a maior parte dos órgãos estaduais de meio ambiente.
Mas para a implementação da Lei faltava, ainda, dois componentes fundamentais: gente e regulamentos. Ou seja, o quadro de servidores do IBAMA e dos órgãos estaduais de meio ambiente era imensamente reduzido para a missão a que se propunham e, como se não bastasse, não era suficiente que a Constituição declarasse, por exemplo, que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, que seria necessário a elaboração de Estudos de Impacto Ambiental para o licenciamento de empreendimentos com significativo impacto ambiental ou que haveria sanções a crimes ambientais. Para a atuação dos órgãos ambientais, era necessária a regulamentação destes dispositivos.
Com muito esforço e articulação, foi basicamente nos últimos anos da década de 90 que ocorreu a construção de regulamentações importantes. Foi somente entre 1997 e 2000 que finalmente criamos instrumentos legais para detalhar procedimentos e regulamentações em relação à gestão de recursos hídricos, ao licenciamento ambiental, à educação ambiental, aos mecanismos de sanções a crimes ambientais e à criação de Unidades de Conservação, entre outros temas abordados pela Lei 6.938/81 e pela Constituição Federal. Há esta época, nossa Política, elaborada para inglês ver, já atingia a maioridade.
Ainda faltava (e ainda falta) gente suficiente para colocar em prática, de forma eficiente, os tais dispositivos. Entretanto, ao menos em nível federal, os primeiros anos do novo milênio viram a quantidade de servidores do IBAMA praticamente triplicar, em sucessivos concursos públicos (os primeiros da instituição). Em processos de seleção cuja relação candidato/vaga era de centenas de candidatos para cada vaga, o IBAMA veio a receber uma grande turma de novos servidores, a maioria jovens, de diferentes formações e muitos com pós-graduação, que se embrenharam nos quatro cantos do país.
O licenciamento ambiental federal deixou de ser cartorial; grandes operações de fiscalização foram executadas, com foco especial no combate ao desmatamento; a educação ambiental superficial passou a ser educação para a gestão ambiental pública. Nada novo. Apenas estava se começando a colocar massivamente em prática o que estava escrito, há mais de 20 anos, na Lei. E os avanços foram incontáveis.
Em relação à gestão de Unidades de Conservação (UCs) federais, os avanços se fizeram mais notáveis a partir de 2007, com a criação do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Com a missão de “proteger o patrimônio natural e promover o desenvolvimento socioambiental”, o ICMBio responde pela implementação, gestão, proteção, fiscalização e monitoramento de, atualmente, 335 UCs instituídas pela União sob sua responsabilidade – que correspondem a cerca de 10% do território continental e 26% da zona econômica exclusiva marinha. As UCs federais abrigam doze categorias de manejo – desde as Áreas de Proteção Ambiental, em que prevalecem as medidas de ordenamento territorial, às Reservas Biológicas, desenhadas para preservar patrimônio biológico. Concursos públicos e muita luta pela sua estruturação trouxeram aportes importantes ao ICMBio, que hoje é considerado, mundialmente, como órgão de excelência na gestão de Unidades de Conservação.
Fazer a lei funcionar, entretanto, gera reação a quem não a segue. Não foram poucos os grandes produtores rurais que passaram a se mobilizar para a flexibilização “destas novas leis do IBAMA”; não foram poucos e nem pouco poderosos os grandes empresários que passaram a se mobilizar para a “flexibilização do licenciamento ambiental”; e não foram poucos os políticos que recepcionaram estas demandas, ou mesmo que foram autuados em crimes ambientais. É o caso, por exemplo, do próprio presidente eleito, que fora multado por estar pescando ilegalmente em uma Estação Ecológica.
O autuado virou presidente, quase meio século depois da criação da nossa Política Nacional de Meio Ambiente; e justamente quando, somente há poucos anos, a mesma passa ser mais efetivamente implementada. Como promessas de campanha, a redução de direitos aos quilombolas, nenhum centímetro a mais de terra para os indígenas, garantias de políticas de expansão da fronteira agrícola na Amazônia e acabar com a “indústria de multas” do IBAMA e do ICMBio. Já após eleito, mas antes ainda da posse, a proposta de agregar o Ministério do Meio Ambiente na pasta da Agricultura (seja oficialmente ou condicionando o funcionamento da agenda ambiental a esta pasta), a desistência do Brasil em sediar a Conferência do Clima da ONU em 2019, as declarações de rompimento com o Acordo de Paris e as declarações irritadas de seu fiel escudeiro sobre o quanto a Noruega precisa aprender conosco a cuidar do ambiente são apenas amostras do que está por vir.
Para quem estudou história, sabe que ela é uma roda gigante. É óbvio que virão sanções internacionais às novas versões da postura de que “se a poluição é o preço do desenvolvimento, estamos dispostos a pagá-lo”, sanções estas adaptadas a uma organização mundial muito mais complexa e condicionada por acordos que nem se sonhava existir a meio século atrás. Economicamente, portanto, o desastre será grande e novamente seremos pressionados à maior responsabilização ambiental. E o faremos, em médio prazo, para inglês ver ou não.
Porém, quando o fizermos, talvez não faça mais sentido, já que o desastre maior será ambiental e social e, em muitos aspectos, irreversível. Levamos quase 50 anos para estruturar o funcionamento de uma política ambiental. Neste período, apesar de todos os esforços, vimos o desastre de Mariana, vimos a expulsão de indígenas de suas terras, vimos o imenso desmatamento da Amazônia… agora, estamos prestes a tornar regra o desastre, e não o seu controle. E, muito provavelmente, não teremos mais tempo e nem capacidade social ou institucional para reconstruir o que será destruído.
Walter Steenbock é doutor em ciências pela Universidade Federal de Santa Catarina e leciona disciplinas relacionadas com a Legislação Ambiental, Avaliação de Impactos Ambientais e Política Ambiental. Walter também é pesquisador e autor com interesse especial pela agroecologia, agricultura familiar e uso de sistemas agroflorestais para recuperação de áreas degradadas. Desde 2002, Walter tem atuado como analista ambiental do IBAMA e posteriormente do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).