A Casa Flywire de David Holmgren e o design permacultural contra queimadas

Desde que começamos a desenvolver a Fazenda Bella após duas queimadas muito graves onde só sobrou a casa entre 2011 e 2013, o design permacultural contra queimada, faz parte dos nossos estudos, interesses e práticas. Com as secas e outras intempéries climáticas que sucedem do aquecimento global, um número cada vez maior de produtores rurais precisará se preparar para as possíveis queimadas. O texto que segue é uma tradução do prefácio de The Flywire House: a case study in design against bushfire (A Casa com Tela de Metal: um estudo de caso em design contra queimadas) escrito por David Holmgren, autor do livreto e co-criador da Permacultura. Na medida em que avançamos no desenvolvimento da Fazenda Bella daremos sequência a essa e outras traduções do material que estudamos para tornar a Fazenda mais resiliente. A Casa Flywire foi publicada em 1993 e relançada em 2009 em versão digital.

Tradução livre Eurico Vianna, PhD (Dezembro de 2017).
 

The Flywire House: a case study in design against bushfire
(A Casa com Tela de Metal: um estudo de caso em design contra queimadas)

Prefácio
As queimadas catastróficas tem sido parte integral da história da colonização Européia no Sudeste australiano. Essa história gerou o contexto para a inclusão do design de casas e paisagens à prova de queimadas como um dos elementos que Bill Mollison e eu trouxemos em Permaculture 1, publicado em 1978. Esse trabalho, então pioneiro, foi diretamente influenciado pela experiência pessoal e recente de ter sobrevivido as grandes queimadas que ocorreram na Tasmânia em 1967. Episódio no qual Bill salvou a sua casa (que de à prova de fogo não tinha nada) e várias outras casas, enquanto outras casas não socorridas se queimaram por completo. Outro tema chave naquele trabalho pioneiro foi o reconhecimento de como as agroflorestas[1] densas e diversificadas que produzem alimento e forragem para a criação (que são consequências do design permacultural) eram menos propensas as queimadas ou mesmo resistente a elas se comparadas com as florestas esclerófilas de eucaliptos e pinheiros que ficam cheias de material combustível.

A experiência de muitas pessoas durante as Queimadas da Quarta-feira de Cinzas, assim como as pesquisas do CSIRO[2] (Departamento de Pesquisa Científica e Industrial dos Estados do Reino Unido Britânico) e outros departamentos confirmaram muito do design permacultural integrado contra queimadas refletindo o consenso com a opinião especializada na área. A Casa Flywire faz essa ponte entre a Permacultura como uma inovação radical que vem das margens da sociedade de um lado e a ciência e políticas públicas convencionais de outro. A influência da visão permacultural das agroflorestas focadas na produção de alimento é moderada no design da Casa Flywire. Assim como o design da casa, o design do paisagismo reflete as sensibilidades mais típicas do público convencional abordadas pelo design original. Além disso os solos argilosos e pouco férteis que tendem ao alagamento no inverno e enrijecimento no verão provavelmente não suportariam um sistema agroflorestal saudável com sistema radicular profundo para se manter saudáveis e resistentes ao fogo em uma seca severa com a que ocorreu entre 1982 e 1983 no estado de Vitória. Seca essa que ficou conhecida como a pior seca dos últimos 100 anos. Como consequência o design das hortas e paisagismo exibe árvores espaçadas e ilhas de vegetação ao invés de sistema agroflorestal denso.

Por volta de 1991, quando A Casa Flywire foi publicada, as primeiras previsões sobre o aquecimento global sugeriam que mais intensidade e maior frequência das queimadas seriam consequências primordiais no sul da Austrália. À época essas previsões pareciam falar do meio do próximo século, mas 18 mais tarde, depois de uma década de secas e queimadas mais intensas e frenquentes, parece que já estamos bem adiantados na crise climática. As queimadas do Sábado Negro, que aconteceu no dia 7 de fevereiro de 2009, mataram 173 pessoas, destruíram aproximadamente duas mil casas e meio milhão de hectares de florestas e áreas rurais. Essa situação resultou na formação de uma Comissão de Inquérito pelo governo do estado de Vitória[3] para investigar as causas e soluções dessa grande tragédia.

Ao rever A Casa Flywire 26 anos depois do projeto original eu me sinto confiante que os princípios e mesmo a maior parte dos detalhes do design desse estudo de caso ainda são relevantes e incorporam quase todos os elementos dos padrões de designs à prova de queimadas atuais. O que torna a Casa Flywire única é o fato de que o princípios contra queimadas surgem quase que naturalmente do enquadramento mais amplo do design permacultural que visa criar um sistema que é produtivo, de baixo impacto e resiliente. Eu acredito que em um clima com verões secos, com muito vento e solo pobre, a abordagem relativamente conservadora ao design do paisagismo com áreas espaçadas de vegetação mas fáceis de serem manejadas é uma alternativa mais produtiva e resistente ao fogo que a abordagem clássica da permacultura que visa criar agroflorestas de altíssima densidade.

Tendo dito isso, a questão do que poderia ser feito de maneira diferente é frequentemente a que mais vem à tona na mente do leitor. Nesse momento de reflexão dois pontos técnicos específicos e dois mais gerais e contextuais vem à mente. Existe alguma evidência de que a área dos telhados das casas é onde grande parte dos incêndios começa por ignição de brasas que ali aterrissam, assim como de que os telhados em formato de catedral são mais resistentes as queimadas. Tendo em vista que os construtores australianos (tanto dos proprietários como dos trabalhadores) tem uma experiência limitada na construção de casas bem vedadas, o teto achatado utilizado na Casa Flywire talvez não tenha sido o design mais adequado.

Em relação ao manejo da paisagem existem evidências consideráveis de que além de melhorar o valor da madeira e a diversidade de plantas forrageiras nativas, o desbaste da densa quantidade de eucalipto que rebrota reduz a probabilidade e intensidade de queimadas com fogo de copa ativo. O desbastamento visando manter um número menor de espécies de eucalipto mais propensas ao fogo em uma parte menor da floresta situada perto da casa foi incluído no design, mas eu acredito que um programa contínuo de desbastamento para diminuir os riscos de queimada, melhorar os futuros valores ecológicos e de madeiras e prover um suprimento constante de combustíveis de carbono neutro deveriam ser um componente essencial de qualquer propriedade rural. Ironicamente, eu lembro que a razão pela qual essa omissão específica foi mais política que técnica uma vez que eu queria concentrar a atenção na casa e o paisagismo ao seu redor como foco primário do design a prova de queimadas e não apoiar a tendência de culparmos a natureza que traz a consequência padronizada de cortar árvores (se necessário todas elas)

As dúvidas mais contextuais desse estudo de caso em particular estão relacionadas com o exemplo de uma casa ‘solta’ em uma propriedade localizada em uma cumeeira de morro íngreme cercada por uma floresta (de eucaliptos) nativa. Embora eu sinta que o design ainda é forte para a localização, nós precisamos reconhecer dois pontos que dificultam os objetivos do design permacultural que visa a produtividade, um baixo impacto ambiental e a resiliência.

Paisagens íngremes, com solos pobres e florestadas (especialmente com eucaliptos) são inerentemente vulneráveis de maneiras que não podem ser completamente compensadas por um bom design (ou manejo da vegetação) assim como são lugares difíceis de se manter estradas de acesso e serviços como abastecimento de água e produção de comida. Em um mundo com mudança climática e futuro com escassez energética essas paisagens podem voltar a ser florestas e/ou pastagens sem a especulação imobiliária nas áreas rurais que tem acontecido nos últimos 50 anos.

Além disso, propriedades rurais com apenas uma casa habitada por uma família pequena ou poucas pessoas que tem que dirigir para o trabalho e outras atividades são inerentemente menos sustentáveis, produtivas e resilientes que propriedades com várias casas como ecovilas e repúblicas onde o design contra queimadas e a prontidão a um colapso (ecológico ou econômico) eminente pode ser apoiado pela economia de escala e a resiliência trazidas pela vida em comunidade. Em face da crise climática, energética e econômica que se desenrola, mais que nunca é necessário nos juntarmos e cooperarmos para sobrevivermos e prosperarmos em um futuro incerto.

David Holmgren, Melliodora, Fevereiro de 2009 (Tradução Eurico Vianna PhD, Dezembro de 2017)

Notas:

[1] – No idioma inglês é possível diferir entre a foodforest, denotando uma floresta voltada para produção alimentar e a agroforestry, um sistema agroflorestal de conotação mais convencional voltado a produção de madeira ou celulose por exemplo.

[2] – Em ingles CSIRO é a abreviação de The Commonwealth Scientific and Industrial Research Organisation, que é a agência federal de pesquisa científica do governo Australiano.

[3]Victorian Royal Commission, em inglês.

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