Árvores pioneiras são agentes de cura da natureza. Sempre que um distúrbio forte o suficiente acontece desequilibrando as coisas para um estado de degradação, elas aparecem. Elas crescem muito rápido e usualmente em céu aberto. Elas começam a produzir sementes cedo e regularmente. As sementes são espalhadas pelo vento e outras árvores germinam em áreas degradadas. Os pássaros pousam nas árvores, comem suas sementes e plantam mais pioneiras em lugares ainda mais distantes. As árvores sombreiam a área, quebram as pedras no solo com suas raízes e trocam açucares por minerais com a micorriza no solo. Elas transportam esses minerais tronco acima por meio da seiva e quando suas folhas caem todos esses nutrientes enriquecem a camada superior do solo. Elas criam sombra, habitats, coletam e preservam água e fertilizam o solo para que outras plantas e animais possam viver melhor depois delas. Essa cura milagrosa acontece com pouco ou nenhum cuidado.
Muito embora algumas pessoas ainda defendam que o processo evolutivo se dá por meio da sobrevivência da espécie mais forte, já há bastante tempo se fortalece a corrente de pensamento que defende que é a cooperação que promove a vida. É a cooperação que ocorre entre e intra flora, fauna e fungos que combate a entropia e re-arranja o caos em sistemas complexos de vida. Todos os seres vivos nesse planeta instintivamente sabem qual é seu papel nesse jogo. Mesmo as forças que chamamos antagônicas como o Yin e o Yang, o bem e o mal, a vida e a morte não estão exatamente competindo. Essas forças também estão cooperando porque uma não poderia existir sem a outra e são, portanto, complementares na formação do ‘todo’.
Nós, seres humanos, entretanto nos tornamos um animal completa e literalmente diferente. Como mostra um artigo recente no The Guardian, nós humanos representamos apenas 0,01% da vida no planeta, mas já destruímos 83% de todos os mamíferos selvagens (isso sem mencionar outras espécies). Muitos outros artigos jornalísticos e científicos podem ser encontrados apresentando evidências esmagadoras de que chegamos à beira de um colapso planetário. O aquecimento global causado pelos humanos recentemente quebrou todos os recordes históricos de ondas de calor e eventos climáticos extremos. Nós também somos a principal causa de perda da biodiversidade. Nossa ação nos trouxe à sexta maior extinção em massa em 3.8 bilhões de anos da história da vida no planeta, um período denominado Antropoceno. E grande parte, uma parte imensa na verdade, desse dano é causado pela agricultura industrial.
Mas porque aparentemente nós somos os únicos a nos distanciar de papeis que nutrem a vida enquanto nos aprimoramos no desenvolvimento de sistemas degradantes. Não deveríamos todos ser como aquelas árvores pioneiras? Não deveríamos todos deixar um mundo melhor com solos mais ricos, água em abundância e ar puro para as futuras gerações depois que nossas vidas efêmeras são ‘cicladas’? Eu acredito que uma das principais razões pela qual nós não agimos diante das informações aterrorizantes que já temos disponível é a desconexão. A desconexão de nós mesmos, das pessoas à nossa volta e do nosso ambiente natural que torna possível que o 1% que já detém mais de 50% dos recursos do planeta dominem o resto de nós.
Entretanto, se um dos maiores problemas é a agricultura industrial, os produtores rurais que vivem o paradigma da agricultura regenerativa podem se tornar os heróis do futuro, como diz o produtor rural e autor Charles Massy. Massy pesquisou 150 fazendas lucrativas e regenerativas para escrever o livro The Call of the Reed Warbler: a new agriculture, a new Earth. O livro que deriva em parte do trabalho de doutoramento de Massy também detalha a situação terrível em que a agricultura industrial colocou o mundo. E embora apresente evidências esmagadoras do quanto o aquecimento global e a degradação do solo ameaçam a nossa existência, por meio dos produtores rurais entrevistados e das fazendas visitadas Massy apresenta muitas modalidades regenerativas que certamente farão parte do conjunto de soluções.
Agora, para que essas modalidades e abordagens funcionem e para que esse movimento regenerativo decole, nós precisamos trabalhar com eco-sistemas e não com ego-sistemas, diz Darren Doherty, um dos líderes mundiais nessa área em seu livro The Regrarians Handbook. O que é preocupante é que a frase de Darren se baseia em um tipo de experiência que muitos no movimento regenerativo já sofreram. Muito embora a maioria das abordagens regenerativas tenham sido concebidas à partir de um espaço de amor e entendimento profundo dos princípios e processos da natureza e muito embora a maioria das pessoas envolvidas na área sejam bem intencionadas, existe muita dissonância entre a ética, princípios e diretivas declarados nessas abordagens e o que alguns líderes e praticantes aplicam em suas vidas pessoais e profissionais.
Essa dissonância causa muitos danos, especialmente para os que procuram um sentimento de pertença à uma comunidade que representa uma vida e uma profissão mais gratificante e significativa nesse mundo. A maioria das pessoas se envolve com a agricultura regenerativa exatamente por que a ética e princípios declarados reverberam com elas e com a busca pela construção de um melhor e mais justo. Mas rapidamente nos deparamos com um educador ou praticante da permacultura com muito pouco “cuidado com as pessoas”, ou com especialistas da agricultura regenerativa que praticam ‘reserva de mercado’, sabotagem e outros comportamentos mafiosos ao invés de criar abundância por meio da cooperação e de uma atitude ‘open-source’.
De novo a desconexão é uma das causas principais. Egos inflados e leões-de-chácara nessas áreas normalmente tem seu senso de conexão interior e com a natureza quebrado. Geralmente também essas pessoas são movidas por insegurança. É tragicômico ouvir professores e praticantes falando do quão abundante o mundo pode ser, do quão generosa a natureza é enquanto agem como se o reconhecimento das pessoas por aquelas que fazem esse trabalho fosse uma moeda escassa demais para se compartilhar. Eu acredito que é essa dissonância entre o ensino da abundância ecológica e dos princípios regenerativos enquanto se pratica um tipo de economia social e emocional baseada na escassez que leva algumas pessoas a boicotar as oportunidades e carreiras das outras.
Será que eles pensam que os seus concorrentes são as pessoas montando fazendas regenerativas, dando aulas e ajudando outras pessoas por meio de consultorias em suas regiões? Nós não precisamos de leões-de-chácara dentro das abordagens regenerativas. Nós não precisamos de comportamento fundamentalista que leva alguns a competir pelas modalidades que mais se identificam. Nós não estamos competindo com nossos colegas. Nós estamos competindo com a ignorância, com um modelo de civilização que gera escassez planejada. Nós estamos competindo com a desconexão da natureza e das formas com as quais podemos produzir nosso alimento de maneira socialmente justa e ecologicamente segura.
Citando Lynn White, Massy explica em seu livro que “nossas idéias são parte do ecossistema que habitamos”. Daí a necessidade de construirmos eco-sistemas (e não ego-sistemas) nos quais a cultura regenerativa possa florecer. E para fazer isso precisamos de tantos produtores, designers e educadores regenerativos quanto for possível. E precisamos produzí-los rapidamente. É assim que vamos virar a mesa e partir de um sistema consumista e degradante para um regenerativo, abundante e cooperativo. Mas para isso precisamos de líderes e praticantes capazes de cumprir seu papel na sucessão do movimento regenerativo. Precisamos de líderes e praticantes que preparem o terreno de forma graciosa e de bom grado criando as condições ideais para que uma geração ainda melhor possa nos suceder.
A razão pela qual a agricultura industrial e as grandes corporações investem pesado em marketing, desinformação e pesquisas falsas é porque eles sabem o quão poderoso a intenção, as ideias, pequenas ações e um grupo de pessoas pode ser. Mas para o movimento regenerativo virar a mesa do sistema nós precisamos de uma abordagem integrativa para a educação e treinamento. Nós precisamos preparar e nutrir as próximas gerações para elas possam se tornar agentes de mudança, para que possam crescer seguros, íntegros de espírito e capazes de reconhecer seu lugar na natureza.
Em resumo, quaisquer que sejam as causas da dissonância entre a ética e princípios regenerativos e o que é praticado em nossas vidas pessoais e profissionais, uma coisa é certa: o movimento da agricultura regenerativa não florescerá nas mãos de leões-de-chácara operando ego-sistemas. Nós precisamos de produtores rurais, designers e educadores regenerativos que possam cumprir seu papel de pioneiros na sucessão ecológica do movimento para criar as futuras gerações que serão agentes de mudança em melhores condições do que tivemos.
Nota 1: Artigo inspirado nos livros de Charles Massy e Darren Doherty’s books, em comunicações pessoais com Darren Doherty, e no documentário “Quem se importa?”.
Nota 2:
Durante os meses de Maio, Junho e Julho estarei no Brasil com uma agenda de cursos de desenho ecológico, agrofloresta e pecuária regenerativa.
Imersão Agroflorestal na Fazenda Bella – entre os dia 1 d 15 de Junho estarei ministrando essa vivência com o Osmany Segall e o Sérgio Olaya.
A imersão é composta por dois cursos teóricos, duas vivências e duas visitas guiadas (ver link acima) equipando os participantes com o conhecimento e a prática necessários para desenhar, implementar e manejar sistemas agroflorestais. Durante a vivência os participantes terão a chance de desenhar consórcios, plantar, colher e ver a comercialização dos produtos.
Para mais detalhes sobre todos os cursos, datas e links para inscrição visite o link dos Cursos de Impacto Positivo 2019.