O livro “Regenesis” de George Monbiot está errando o alvo?

Que o sistema alimentar está quebrado é algo com o qual todos concordamos. Mas poucos entendem exatamente como está quebrado. Dos pontos mais distantes onde o negócio começa, onde sementes [transgênicas] patenteadas são desenvolvidas junto com seus pesticidas patenteados por corporações gigantes que operam oligopólios de facto, até a ponta final dos resíduos, onde centenas de zonas mortas estão se expandindo nos oceanos do mundo, o primeiro capítulo de ‘Regenesis’ nos lembra que a crise alimentar, ainda mais do que a crise climática, é o que está destruindo rápida e talvez irrevogavelmente a própria base da vida humana neste planeta.

Nota: O artigo que segue é de Patrick Worms, presidente da União Internacional de Agroflorestas, com tradução minha (Eurico Vianna, PhD) e pode ser encontrado aqui.

Patrick faz uma excelente e elegante revisão do livro de Monbiot. Além de fazer isso à partir do prisma de quem vive com comunidades pastoralistas e respira os sistemas agroflorestais, Patrick ressalta a dimensão da gestão. Talvez de forma não tão explicita, mas Patrick explica que Monbiot ainda não alcançou a necessidade de discernirmos entre complicado e complexo e muito menos de qualificarmos o tipo de gestão que precisamos abolir e os tipos que podemos adotar em seu lugar (porque animais não degradam as paisagens, o modelo de gestão sim). Bom, não sou tão elegante quanto Patrick e tendo acompanhado Monbiot por anos, não acredito que as soluções de integração animal que podem compor os sistemas alimentares regenerativos foram deixadas de fora do seu livro por uma falha ou um ponto cego. Isso aconteceu por um viés cognitivo, Monbiot sustenta que comer carne é um luxo que não podemos mais custear. Irônico que um dos sistemas que Patrick defende e que Monbiot se negou a mencionar, o Gerenciamento Holístico, se propõe exatamente a gerir sistemas complexos, a produção regenerativa de animais e a extirpar os vieses cognitivos da ciência e das políticas públicas e tendências que condenam os animais e não o modelo de gestão industrial pela degradação que vemos no planeta. Monbiot conhece o Allan Savory, proponente do Gerenciamento Holístico e já trocou várias mensagens com ele, mas escolheu omitir o sucesso desse modelo de gestão e abordagem de produção. Ele poderia ter se comunicado e lido a obra de Miguel Altieri, um dos agrônomos agroecologistas mais prolíficos da atualidade que argumenta que pequenas propriedades rurais com integração animal agroecológica usam até 20x menos combustíveis fósseis, mas de novo, não mencionar sistemas de produção que integram animais não foi um erro, foi uma decisão. Por fim, Patrick também trás os sistemas agroflorestais para o cerne da discussão e ao abordá-los junto com sistemas bem manejados de produção animal, nos abre uma excelente oportunidade para o diálogo entre essas duas áreas no Brasil, um país atualmente com 33 milhões de pessoas passando forme enquanto o modelo de gestão reducionista do agro (que visa só lucro) bate recordes de lucros.

Pasmem: a Fazenda Padrão Global

George Monbiot faz um excelente trabalho ao explicar porque isso acontece: um impulso implacável para simplificação, padronização e eficiência agrícola levou ao surgimento do que ele chama de “Fazenda Padrão Global” (no inglês abreviado para GSF). Estamos todos familiarizados com isso: presente em quase todos os continentes, [esse modelo] produz culturas e animais geneticamente padronizados, com fertilizantes e agrotóxicos padronizados, usando processos agronômicos que degradam o solo de formas muito parecidas em todos os lugares e estão sujeitos aos mesmos estresses desde as secas até as doenças. Por ser tão padronizado, o GSF corre muito mais risco de interrupção do que os sistemas agrícolas tradicionais muito mais complexos que está substituindo implacavelmente. Como resultado, o sistema alimentar global é alarmantemente quebradiço. No entanto, a Fazenda Padrão Global é uma fera extraordinariamente poderosa: a perversidade dos subsídios agrícolas do mundo rico é resultado direto do lobby do GSF (sim, estou olhando para você, Europa).

Seu foco na importância dos números é particularmente valioso. Por exemplo, pouco importa se o mundo rico se tornar “invadido por veganos comedores de tofu”, desde que a grande maioria das pessoas neste planeta continue obtendo a proteína que obtém de sistemas pecuários insustentáveis. Os aficionados da agricultura urbana e os locavores [pessoas que buscam suprir seu alimento localmente] estão cometendo erros matemáticos simples: quando mais de 3,5 bilhões de pessoas vivem nas cidades, os alimentos, por definição, devem vir de centenas e milhares de quilômetros de distância. As enormes áreas dedicadas ao monocultivo de plantas para a produção de biocombustíveis e ração animal são de fato uma obscenidade.

Grande parte da colheita global acaba nos tanques dos carros e nas barrigas do gado

Como a agricultura degrada tanto os solos e a biodiversidade, é importante limitar seu alcance. Mas nós a tratamos como um recurso ilimitado: uma grande parte da colheita global acaba nos tanques dos carros e nas barrigas do gado. Acrescente a isso a eficiência de conversão notavelmente baixa da maioria dos sistemas pecuários e o milagre é que ainda não vimos o colapso do sistema alimentar global e dos ecossistemas que o sustentam. O GSF também é a maior fonte de emissões de gases de efeito estufa – então o sistema alimentar corre o risco de nos matar tanto quanto de nos nutrir. A busca por formas alternativas para gerar os carboidratos e proteínas de que precisamos é urgente, e Regenesis faz um bom trabalho ao destacar o potencial da fermentação microbiana nesse sentido. Empresas como a Solar Foods e suas receitas para cultivar proteínas usando estoques de ração que precisam de várias ordens de magnitude menos terra do que cultivo, sem dúvida, serão uma parte preciosa do nosso futuro.

Não enxergando a floresta… nem as árvores!

E, no entanto, o livro é marcado por duas falhas decepcionantes. Primeiro, Monbiot conseguiu escrever um livro inteiro sobre os problemas e a regeneração do sistema alimentar sem mencionar a palavra agrofloresta. Isso é surpreendente: poucas intervenções agrícolas podem aumentar de forma mais duradoura e resiliente a produção total de um determinado pedaço de terra do que o sistema que se especializa em misturar plantas perenes como árvores com pastagens ou plantações. A agrofloresta aumenta os rendimentos em qualquer lugar entre 30% (na zona temperada) até várias centenas percentuais (nos trópicos úmidos), enquanto aumenta a biodiversidade em comparação com as monoculturas, às vezes em quantidades notavelmente grandes. Como aumentar a produtividade é absolutamente crucial para alimentar uma enorme e crescente população humana sem prejudicar ainda mais o mundo, essa omissão é surpreendente.

Talvez esse ponto cego esteja ligado às condições-limite que Monbiot se impõe. Seu livro é sobre o sistema alimentar, não sobre paisagens e seus usos. Os sistemas agroflorestais aumentam a produtividade total de árvores e cultivos, não necessariamente apenas dos cultivos [anuais]. No entanto, essas culturas não alimentares também podem danificar seriamente o solo e impactar a biodiversidade. Os vastos campos de algodão do Uzbequistão carregam grande parte da culpa pelo desaparecimento do Mar de Aral, e nossa fome por papel higiênico alimenta diretamente a transformação das florestas boreais escandinavas em plantações monoclonais.

Em segundo lugar, a Monbiot parece não reconhecer que a importância de uma gestão sábia para a saúde do solo e do ecossistema se estende além das terras agrícolas. Ele dedica um capítulo inteiro à extraordinária fazenda de Ian Tollhurst, um horticultor que cultiva uma cornucópia de vegetais sem quaisquer insumos em solos ruins perto de Oxford. Passei um dia com Tolly (como todos o chamam) em sua fazenda. Ele é um agricultor inspirador, carismático e excepcional, alcançando resultados que a maioria dos agrônomos descartaria como impossíveis. Não é de surpreender que os artigos científicos que analisam a horticultura não consigam captar seu soberbo, mas excepcional sistema agrícola. Monbiot reconhece a natureza excepcional da fazenda de Tolly e assim, com razão, decide não deixar a ciência mais ampla da horticultura ficar em seu caminho. Lamentavelmente, ele não estende a mesma abordagem a qualquer outra forma de uso da terra e, em particular, aos sistemas de produção pastoril. Ele parece não ter visitado uma única pecuária (bem manejada ou não), limitando-se a uma dieta de artigos científicos que pretendem analisar o manejo do pastoreio. Sem ter falado com nenhum pecuarista, ele os acusa de fazer “afirmações malucas”, descarta os artigos que mostram a redução significativa de carbono e os benefícios da biodiversidade do Gerenciamento Holístico de Pastagens como “menor”, e encerra esse tópico extraordinariamente importante em três páginas profundamente imperfeitas.

Pastar ou não pastar?

Não há dúvida de que a quantidade total de calorias, proteínas ou vitaminas por acre que pode ser produzida por meio de sistemas de pastagem é muito menor do que a fornecida por sistemas de cultivo (e, a fortiori, fermentação bacteriana). No entanto, o manejo é importante para a saúde do solo. E nessa frente, sistemas de pastagem bem gerenciados tendem a vencer. O cultivo pode, em casos excepcionais como o de Tolly, restaurar a biodiversidade em menor escala – artrópodes, biota do solo, pássaros – mas a grande maioria das operações de cultivo são, como Monbiot deixa claro em seus capítulos introdutórios, desastres absolutos tanto para o clima quanto para a biodiversidade. O fato de que, como os sistemas de cultivo, quase todas as operações pecuárias neste planeta são destrutivas, deveria tê-lo encorajado a visitar os fazendeiros que estão obtendo resultados extraordinariamente diferentes. Exemplos de toda a África, EUA, Austrália, Ásia e até Europa mostram que sistemas de pastagem bem administrados podem gerar alimentos humanos enquanto mantêm ou regeneram uma boa variedade de megafauna na terra. A biodiversidade adicional que flui desse manejo aumenta a resiliência desses sistemas de pastagem, bem como sua produtividade, o que explica sua crescente popularidade entre os pecuaristas. Sim, esses sistemas de pastoreio são excepcionais e, portanto, por definição, raros. Mas não tão raros quanto a horticultura de Tolly. Procurá-los e analisar como eles poderiam e não poderiam contribuir para resolver a crise do sistema alimentar teria acrescentado valor ao livro.

Para um trabalho que se propõe a analisar todo o sistema alimentar, Monbiot também é estranhamente silencioso sobre os extraordinários aspectos sociais e culturais envolvidos. Ele ressalta que a poesia com a qual bordamos a vida pastoral – o velho pastor mirrado olhando significativamente para a distância nas colinas galesas, o caubói cavalgando para o pôr do sol no oeste americano, as pequenas fazendas fofas decorando os pacotes de manteiga e as garrafas de leite do mundo – é uma enorme barreira contra a análise racional dos danos causados ​​pela maioria dos sistemas pastoris. Mas sua discussão sobre a importância do pastoreio para os povos tradicionais e a biodiversidade que eles sustentam se limita a um pequeno parágrafo lamentando o que aconteceu com um grupo Maasai com quem ele trabalhou.

Politicamente pode ser uma venda mais fácil do que uma nova versão do feudalismo em que as classes trabalhadoras urbanas pagam aos ricos proprietários de terras simplesmente por deixarem suas terras selvagens

Pior, ele não fala sobre as implicações sociais e financeiras de tirar da produção vastas áreas de terras agrícolas e pastoris. Existem milhões de quilômetros quadrados de terra neste planeta pertencentes a centenas de milhões de pessoas cujo valor deriva inteiramente de sua capacidade de cultivar produtos para os mercados. O que acontece com esse valor se a agricultura encolher tão drasticamente quanto ele sugere que deveria? Todos podemos concordar que os alimentos para animais e os biocombustíveis para o cultivo da terra devem ser substituídos por outra coisa, mas isso terá de ser pago. O mundo está preparado para pagar aos agricultores apenas por possuir terras em troca de remover o arame farpado e deixá-lo voltar à natureza? Pode-se decidir que o bom manejo do pasto sob as árvores, prática conhecida como silvopastoril que o Projeto Drawdown classifica como uma das 11 principais medidas de mitigação de carbono que temos à nossa disposição, é o menor de dois males: os proprietários podem vender carne e ainda fazer algo bom para o carbono e a biodiversidade, e pode ser mais fácil de vender, politicamente, do que uma nova versão do feudalismo onde as classes trabalhadoras urbanas pagam aos ricos proprietários de terras simplesmente por deixarem suas terras voltarem à natureza.

Esse silêncio é sintomático do maior problema do livro: seu fracasso em se envolver com o papel da gestão humana, algo tão relevante para as áreas selvagens quanto para as terras pastoris e agrícolas em nosso planeta lotado. O Castelo de Knepp, Oostvardersplassen e os icônicos parques nacionais da África podem parecer uma natureza gloriosa fazendo seu trabalho, mas cada um entraria em colapso sem um gerenciamento cuidadoso. Oostvardersplassen é gerenciado de forma intensiva, inclusive pela implantação de grandes obras de água. A maioria dos parques nacionais africanos são fazendas de caça glorificadas, administradas por várias partes, incluindo operadores comerciais, e às vezes não muito bem (as fotos da vida selvagem em terra nua sob algumas árvores não se tornam a imagem icônica que temos dos safáris africanos?). Na África Austral, a vida selvagem é frequentemente encontrada em caça comercial ou fazendas de gado, já que é onde está o pastoreio e, portanto, onde estão as presas: como Knepp, são áreas de aparência selvagem que, na verdade, são cuidadosamente manejadas.

Junto-me a Monbiot para lamentar que os assentamentos humanos, as densas redes rodoviárias e a maldição do arame farpado dividiram tanto a terra que as grandes migrações de milhões de animais que eram comuns até algumas centenas de anos atrás não podem retornar. Mas isso não significa que as pastagens devam morrer ou que a vida selvagem seja extinta. Podemos prescindir do manejo do gado, como sugere Monbiot, mas, a menos que queiramos ver a vida selvagem desaparecer, não podemos prescindir do manejo da vida selvagem.

O futuro está na gestão inteligente de paisagens para todas as nossas necessidades – alimentos, madeira, fibra, água, carbono, biodiversidade e muito mais

E enquanto somos tão numerosos neste planeta, isso significa administrar praticamente tudo. O futuro está na gestão inteligente de paisagens para todas as nossas necessidades – alimentos, madeira, fibra, água, carbono, biodiversidade e muito mais. Apesar de suas falhas, este é um livro importante e que não hesito em chamar de leitura obrigatória. Monbiot acerta as grandes questões, desde a escala e o impacto do sistema alimentar, passando pelos perigos e a fragilidade das Fazendas Padrão Global, até o impacto extraordinariamente deletério da concentração corporativa ao longo da cadeia de valor alimentar e as catástrofes confiáveis ​​que os subsídios do mundo agrícola rico proporcionam. Só não espere que ele ofereça um conjunto completo de soluções.

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