A palavra “orgânico” assim como o conceito que ela implica foram cunhados por J. I. Rodale o editor e fundador da revista Organic Gardening and Farming nos EUA há aproximadamente 70 anos. Desde então a certificação de produtos orgânicos foi desenvolvida por produtores e ambientalistas que defendiam a produção de alimentos tendo a natureza como modelo e combatiam a utilização de maquinário pesado e a utilização fertilizantes, pesticidas e herbicidas químicos derivados de petróleo em cultivos de monocultura. No entanto, nos últimos anos pequenos produtores, cooperativas e associações tem optado por certificações alternativas, muitas vezes usando outros conceitos. Essas opções alternativas sofrem muitas críticas dos que lutaram pelo conceito orgânico por tantas décadas. Mas quais são os benefícios das certificações alternativas? Quais são os riscos que corremos buscando rotas alternativas?
A indústria dos produtos orgânicos é uma das que mais tem crescido no Brasil e em outros países nos últimos anos. Exatamente por isso, o lobby do agronegócio tem feito um esforço enorme para cooptar o conceito de produto “orgânico”. A influência do agronegócio nos órgãos certificadores é palpável. Assim como é visível o esforço das corporações e do agronegócio para sequestrar conceitos representados pelos termos “orgânico” e “sustentável”. A ultima campanha do agronegócio no Brasil, por exemplo, traz imagens “verdes” e “saudáveis” de frutas, verduras e legumes produzidos por trabalhadores felizes e sorridentes com slogan “o agro é pop, o agro é tech, o agro é tudo”. Mas a verdade é que o agronegócio vem perdendo muita popularidade e mercado na medida em que as pessoas se conscientizam que seus produtos envenenam o meio ambiente, os produtores e os consumidores com sua ‘tecnologia’.
O sequestro do conceito orgânico pelo agronegócio cresce na medida em que a população tenta optar por produtos saudáveis que sejam produzidos em harmonia com a natureza. Em um artigo recente no CounterPunch Francis Thicke relata a decadência da certificação “orgânica” nos EUA. O artigo de Francis conta que a NOSB (Conselho Nacional para os Parâmetros Orgânicos Norte Americano) votou a favor da certificação orgânica para produtos cultivados em hidroponia. Ainda segundo Francis, a decisão não deve ter sido uma surpresa para os que vem acompanhando de perto o movimento dos produtos orgânicos serem cooptados pelo agronegócio Norte Americano desde 1990.
Mas se não é mais possível confiarmos nos produtos certificados, qual a solução? Pois já sabemos que no Brasil todo o alimento produzido pelo agronegócio nos envenena e degrada o meio ambiente. O Ministério da Agricultura informa que “para um produto, in natura ou processado, ser considerado orgânico ele precisa ser produzido em um sistema agropecuário orgânico ou ter sido extraído de maneira sustentável e não prejudicial ao ecossistema local” (Orgânicos, 2016). Mas se aplicarmos as definições originais dos conceitos ‘orgânico’ e ‘sustentável’ ao que é produzido pelo agronegócio, praticamente nada poderia ser chamado de orgânico. Primeiro porque o conceito original de um produto orgânico era o de uma verdura, fruta ou legume produzido em solos saudáveis e de maneira harmonizada com a natureza. Segundo porque o cultivo de monocultura de grãos, frutas ou hortaliças em áreas desmatadas e utilizando irrigação que bombeia água dos lençóis freáticos, mesmo que não faça uso de adubos, pesticidas e herbicidas químicos, não é harmonioso com a natureza.
Para que esses produtos possam ser comercializados, informa o Ministério da Agricultura, “os produtos orgânicos deverão ser certificados por organizações credenciados no Ministério da Agricultura, sendo dispensados da certificação somente aqueles produzidos por agricultores familiares que fazem parte de organizações de controle social cadastradas no Ministério, que comercializam exclusivamente em venda direta aos consumidores”(Orgânicos, 2016). Ou seja, os pequenos produtores podem até vender seus produtos na feira, mas se quiserem vender produtos com valor agregado como pães, geleias, conservas, farinhas, ou quaisquer outros produtos processados com a certificação orgânica, eles precisam passar pelo crivo do Ministério da Agricultura. Mas a burocracia, os custos e os parâmetros de construção das infraestruturas que fabricam ou processam esses produtos foram desenvolvidas para regulamentar grandes empresas e praticamente impedem o pequeno produtor de comercializar tais produtos. Produtos que diga-se de passagem são muito mais lucrativos do que as frutas e hortaliças não processadas.
A certificação dos orgânicos tem, então, dois problemas centrais. Primeiro, o lobby do agronegócio que atua de maneira a favorecer as corporações no que diz respeito a legislação que rege essa indústria. A legislação aprovada, por sua vez, dilui o contexto original do “orgânico” e permite que o agronegócio sequestre o conceito para enganar os consumidores que procuram alternativas saudáveis para sua dieta. Segundo, a centralização do poder de certificação nos órgãos do governo. Nesse caso, o poder fica nas mãos do Ministério da Agricultura, ou organizações chanceladas, que como vimos estão sujeitos à influência do lobby do agronegócio ou à mercê do contexto político vigente de qualquer governo.
Steven Gorelick, que participou do NOSB por 5 anos se desligou do conselho após a votação que permitiu a inclusão de produtos hidropônicos na lista dos orgânicos. Em seu discurso de despedida Gorelick disse que “talvez nós não devêssemos nos surpreender com o fato de que as grandes corporações estejam assumindo o poder dentro do programa de orgânicos do USDA (Departamento Norte Americano de Agricultura) porque a influência do capital corrói todos os níveis do nosso governo” (Link, tradução do autor). Gorelick afirma que uma das saídas mais viáveis seria a adoção de uma ‘extensão’ ao rótulo “orgânico” pelos produtores que estão dispostos a produzir produtos verdadeiramente orgânicos para satisfazer consumidores informados e exigentes. A recomendação de Gorelick enfrenta críticas dos que vem lutando por décadas para tornar viável e confiável o selo e a certificação de produtos orgânicos. Essas críticas vem principalmente dos produtores que tiveram que enfrentar toda a burocracia e pagar todos os custos envolvidos para conseguirem a certificação. Outro argumento frequente é de que a certificação, mesmo que centralizada, e melhor que a falta de regulamentação generalizada.
Joel Salatin, autor de renome entre os adeptos de uma produção rural regenerativa, também alerta para a diluição do conceito “orgânico” quando usado pelas corporações. Segundo Salatin, “um número cada vez maior de pessoas está se conscientizando da corrupção e adulteração dentro da indústria dos “orgânicos” sancionados e certificados pelo governo. Essas pessoas estão cansadas de ouvir que 6000 galinhas confinadas em um galpão com uma área menor que 1 metro quadrado para cada uma possam ser certificadas ‘orgânicas’” (Link, tradução do autor). Gorelick também chama a atenção para incoerência que é rotular de “orgânico” laticínios e carne produzidos em confinamento, gastando quantidades absurdas de água e poluindo os lençóis freáticos com o chorume de esgoto concentrado que escoa das áreas de confinamento. Mais grave ainda é a denúncia feita por Gorelick de que os inspetores do USDA avisam ao agronegócio quando estão para fazer uma visita de inspeção de modo que todas as irregularidades possam ser sanadas (temporariamente) nos dias de visita.
Salatin defende que a melhor certificação ou maneira de saber se os produtos que está comprando são verdadeiramente saudáveis é fazer uma visita surpresa ao produtor rural para checar a fazenda, ver como seus produtos são produzidos e quais livros o produtor está lendo. Isso mesmo, os livros. Segundo Salatin, é vendo como o produtor alimenta seus pensamentos e emoções que podemos verificar seu caráter e convicções. Salatin, afirma que a maneira que ele produz um frango para o abate é um reflexo da visão de mundo que ele tem. E ele diz que seus clientes podem aprender mais sobre a visão de mundo dele vendo os livros que se ele lê do que se ele preenchesse um monte de formulários em uma repartição pública para ter uma certificação sancionada pelo governo (Joel Salatin em The Omnivore’s Dilema, Pollan, 2006).
Há alguns anos Salatin tem feito uso de uma ‘extensão’ ao conceito “orgânico”. Depois de enfrentar várias barreiras burocráticas para certificação orgânica dos ovos, leite e carne bovina, suína e de aves produzidas em sua fazenda, ele passou a chamar seus produtos “mais que orgânicos”. “Nossos clientes”, Salatin compartilha, “aderem rapidamente a ideia dos nossos produtos serem ‘mais que orgânicos’ porque essa ideia reverbera com a decepção que eles sofrem com a certificação orgânica oferecida pelo governo” (Link, tradução do autor).
A certificação participativa tem sido umas das soluções alternativas adotadas para que pequenos produtores possam contornar a burocracia e muitas vezes os custos de uma certificação sancionada por um órgão federal. A certificação participativa é largamente adotada pelas associações de produtores agroecológicos em vários estados brasileiros. A certificação participativa também tem alcançado sucesso na Austrália. Em vários condados australianos produtores que querem certificar seus produtos mas enfrentam dificuldades com os órgãos oficiais, tem se organizado em associações regionais. Esses produtores tem seus solos testados e suas áreas de produção visitadas regularmente por membros da associação e comunidade. Os membros tem acesso a encontros profissionalizantes, à rede de contato da associação, e ao uso da logomarca e carimbo de certificação.
Em suma, a mudança que precisa ser feita é de hábito e não de rótulos. Tanto do produtor quando do consumidor.
O consumidor que confia em uma corporação para suprir sua dieta corre, de fato, o risco de estar sendo enganado mesmo quando opta e paga mais caro pelos produtos “orgânicos”. Isso sem mencionar o fato de que provavelmente está participando da degradação ambiental. Já o consumidor que muda de hábito e procura saber quem produz seu alimento tem mais chances de comprar produtos verdadeiramente saudáveis e a preços mais justos, independente do tipo de certificação usada. Apoiando o produtor local o consumidor também estará colaborando com a regeneração do meio ambiente.
O produtor rural que não busca alternativas nos processos de certificação, fica à mercê de um poder centralizado e, por vezes, corrupto como vimos acima. Embora a certificação alternativa talvez não seja o caminho mais simples, muitas vezes buscar alternativas descentralizadas, que possam a longo prazo ser mais justas e sustentáveis (por serem mais acessíveis para todos) é necessário. Especialmente quando conceitos importantes como o “orgânico” passam a ser corrompidos pelo uso das corporações.
Referências:
Thicke, F. (11/12/2017). What does “organic” mean?. Acessado em https://www.counterpunch.org/2017/12/11/what-does-organic-mean/
Pollan, M. (2006). The Omnivore’s Dillema: A Natural History of Four Meals. Penguin Press. USA.
Phelps, M. (September, 2009). Joel Salatin: a Beyond Organic Local Food Activist. Retrieved from https://www.motherearthnews.com/nature-and-environment/joel-salatin-local-food-zmaz09aszraw
Ministério da Agricultura (08/01/2016). Orgânicos. Acessado em http://www.agricultura.gov.br/assuntos/sustentabilidade/organicos