E se todo mundo parasse de comer carne?

“Você alguma vez já imaginou o que aconteceria se todo mundo adotasse uma dieta vegana e parássemos de criar animais para produção de carne?” Robyn Francis, uma das pioneiras do movimento mundial da Permacultura e diretora fundadora do primeiro colégio técnico de Permacultura na Austrália, recentemente escreveu um artigo refletindo sobre essa pergunta. Segue um resumo da tradução acompanhado de alguns de meus pensamentos e reflexões sobre o tema.

O debate acerca da ‘dieta ideal’ tem se acirrado nos últimos tempos na medida em que as pessoas se conscientizam dos problemas ambientais. E muito embora esse movimento de conscientização seja importante, frequentemente as discussões tem sido baseadas em argumentos sem a contextualização devida ou em meias verdades. Recentemente eu discuti o assunto em um artigo chamado O Vegetarianismo/Veganismo e a Agricultura Regenerativa. Vale à pena repetir dois de meus argumentos compartilhados no artigo anterior. Primeiramente o que causa o impacto ambiental não é a dieta onívora ou vegetariana/vegana, é a maneira como o alimento é produzido. Segundo, nosso foco e energia deve ser contra carne e grãos produzidos pelo agronegócio e não em combatermos uns aos outros criando ainda mais divisão em nossa sociedade. Encontrei muitas das minhas opiniões e preocupações no artigo da Robyn Francis e compartilho com ela o respeito pela opção de todos escolherem sua dieta livres de julgamento. Mas o artigo dela traz várias outras perguntas e reflexões importantes que comumente são deixadas de fora do debate e que se o argumento é ambiental, valem à pena serem discutidos. Segue abaixo a tradução de alguns trechos acompanhados de comentários.

Um artigo do jornal Inglês Independent, traz o seguinte argumento:

Se todos os animais fossem removidos do planeta, a quantidade de comida disponível para os humanos aumentaria 23%. Isso se dá porque os grãos que atualmente são produzidos para alimentar os animais poderiam ser consumidos pelos humanos. (ênfase do tradutor/autor)

Robyn, que acha esse tipo de raciocínio perturbador, incrivelmente egoísta e antropocêntrico, pergunta como os animais seriam “simplesmente removidos?

O argumento vegetariano/vegano, segundo a Robyn, é movido pela perspectiva emocional de salvar bilhões de vidas animais de um fim nos abatedouros para consumo humano. Os mais radicais, Robyn complementa, propõem o fim da ‘exploração animal’ em sistemas de produção de comida, lã, laticínios, produção de ovos ou mesmo como forma de transporte. Mas as perguntas que seguem no artigo dela são:

O que faríamos com os 23.000.000.000 de animais salvos? Afinal são 996 milhões de cabeça de gado, 1.9 bilhões de ovinos e caprinos, 980 milhões de suínos e mais 19 bilhões de galinhas (artigo original em inglês nesse link). Isso sem contar patos, perus, coelhos, alpacas, búfalos-asiáticos e outros animais criados para o consumo, reflete Robyn Francis.

Esses animais serão soltos? Os machos serão castrados para evitar que proliferem pelo planeta? Qual o custo de uma operação nessa escala? Os animais serão todos levados para santuários? Se os santuários forem a opção escolhida, as pessoas tem noção de qual seria a área de terra necessária para abrigar 23.000.000.000 de animais?

Essas perguntas são elementares para uma pessoa mais conectada com a simbiose entre humanos e animais e com o mundo da produção regenerativa de alimentos como a Robyn. Mais ainda, essas perguntas deixam claro a inviabilidade de opiniões e medidas radicais geralmente vindas de pessoas das classes mais abastadas e que vivem nos grandes centros urbanos com pouquíssimo contato com a produção alimentar. Outro alerta que Robyn faz é que assim como várias espécies de animais e plantas que evoluíra juntos para compor os ecossistemas do planeta,  humanos e animais criados para o abate se desenvolveram em simbiose nos últimos 10.000 anos. Várias das espécies foram desenvolvidas e, de uma forma ou de outra, fazem parte integral da vida no campo como alimento, transporte ou força de trabalho decorrem dessa relação simbiótica. Temos o direito de tomar decisões que levariam essas espécies a extinção?

Existem ainda outras implicações que Robyn compartilha como parte de suas reflexões. Produtos animais, que em grande parte são subprodutos do processamento deles como alimento, são peças chaves na produção de plásticos, cosméticos, camisinhas, cola de madeira, ácido esteárico (usado em fogos de artifícios e pneus), pasta de dente, tintas, canetas, shampoo e condicionadores, amaciante de roupas, borracha, químicos anti-congelantes (usados em países frios e em aditivo de radiadores), papel celofane, cimento, agentes químicos impermeabilizantes, discos de vinil, fósforos, argamassa (usada em construção), vidro, remédios, hormônios, enzimas e vitaminas, insulina, suturas cirúrgicas, colas de compensado, tecidos, tinturas, esmeris, papeis de parede, velas, materiais de escritório, chicletes, açúcar refinado, vidros, cerâmicas, cordas musicais, aromatizantes, gelatinas e o mais importante: o adubo natural fornecido para produção de frutas, verduras e legumes.

Robyn reconhece que alguns substitutos já existem, como couro e tecidos sintéticos feitos quase que exclusivamente de derivados de petróleo – que são ótimos para indústria dos combustíveis fósseis. Infelizmente, Robyn alerta, a maior parte das alternativas para produzir os produtos descritos acima gastariam energia demais, seriam em grande parte baseados em derivados de petróleo e altamente poluentes. Por fim, ela alerta, alguns desses produtos não podem ser substituídos nem por derivados de petróleo nem por componentes orgânicos como o cânhamo, a soja, o milho, o óleo de palmeiras e outros produtos com base vegetal. Além disso, os animais criados para abate na agricultura regenerativa fornecem outros serviços ecológicos como controle de biomassa, fertilização, dispersão de sementes, manejo de pastagens e paisagens, manutenção da relação simbiótica entre plantas e animais. Isso sem falar de outras funções que esses animais tem no transporte, na força de trabalho, geração de energia e até mesmo como companhia para os seres humanos.

Outra lógica do vegetarianismo/veganismo que Robyn compartilha é a de que a soja e o milho produzidos para alimentar animais são os maiores responsáveis pelo desmatamento. Dentro desse raciocínio se parássemos de comer esses animais, esses grãos poderiam alimentar os seres humanos. O problema é que 90% da soja produzida é direcionada para a produção de óleo, de bio-combustíveis ou de produtos industriais (como tinta para indústria automobilística). Diga-se de passagem, quase toda soja é transgênica e produzida usando métodos que poluem e degradam o meio ambiente. Ou seja, o impacto ambiental regenerativo seria de apenas 10%. Grande parte do subproduto da soja vai para animais e para produtos alimentícios processados (que por sua vez tem causado um aumento enorme de casos de alergia por conta da maneira que é produzida).

Outro argumento compartilhado por Robyn e por mim em meu último artigo é que uma dieta baseada em grãos (quase sempre do agronegócio) também tem um impacto ambiental enorme. A produção de grãos está diretamente ligada a indústria do petróleo desde o maquinário até os insumos usados na produção. A agricultura convencional de grãos também é responsável pelos maiores índices de erosão da agricultura. Segundo relatórios da FAO a agronegócio perde 20 toneladas de solo superior para produzir 500 kilos de alimento por pessoa a cada ano. Além disso, Robyn compartilha, a produção convencional de grãos também é responsável pela morte de bilhões de animais de pequeno porte como pássaros, lagartos, anfíbios, cobras e pequenos marsupiais. Isso sem abordarmos a vida no solo que também se extingue na monocultura industrial causando ainda outros impactos como a interrupção dos ciclos hidrológicos e a diminuição drástica de nutrientes essenciais na formação dos alimentos produzidos dentro desses sistemas.

E se o problema for o metano gerado na produção de animais para o abate, pergunta Robyn?

Se o problema for metano, Robyn reflete, por quê não se comenta que a produção de arroz em áreas alagadiças produz praticamente a mesma quantidade de metano que os criados para o abate em sistemas industrializados? Isso sem falar que esse método de produção de arroz também é uma das principais causas de desmatamento em países asiáticos. Quando a poluição é causada na produção de grãos ela não conta na lógica desse debate? Robyn faz essa pergunta e exige a devida coerência. Por quê, ela pergunta, não vemos manchetes e memes na internet pedindo que todos parem de comer arroz.

Vastas porções de terra que não servem para produção de hortaliças ficariam abandonadas e inutilizadas se os animais fossem removidos do sistema de produção alimentar. Os dois terços áridos e semiáridos do mundo não servem para produção de grãos ou hortaliças e para as pessoas que vivem nessas áreas a dieta onívora é uma questão de segurança alimentar. Se a questão é ambiental, mais uma vez o problema é de onde vem nosso alimento e não o quê comemos Robyn deixa claro.

Por séculos a ingestão de carne complementou uma dieta com tubérculos, legumes e hortaliças e as receitas aproveitavam o animal sacrificado do pé à cabeça nos alimentar. Só nos últimos 70 anos, entretanto, a indústria do petróleo passou a permitir e subsidiar o consumismo alimentar gerando um impacto ambiental e desperdícios enormes no sistema de produção industrializado. Outra questão levantada por Robyn é que 40% dos alimentos produzidos hoje são desperdiçados. Ou seja, mesmo se não considerarmos o tipo de dieta e a maneira com que esse alimento é produzido, combater os 40% de desperdício já economizaria quase o dobro dos alimentos que o mundo inteiro economizaria adotando uma dieta vegana.

Mais uma vez eu pergunto: o problema (ambiental) é a dieta ou a maneira com a qual nossos alimentos são produzidos? Para os que tem mais contato e conexão com as maneiras regenerativas de produção alimentar e com as classes mais baixas que vivem em áreas rurais a resposta é clara: é possível produzir alimentos para todos enquanto regeneramos o meio ambiente, mas só se pequenos produtores rurais forem responsáveis por uma produção e distribuição local baseada em sistemas diversificados que incluam animais.

Robyn Francis é designer e educadora em Permacultura. Ela desenvolveu a propriedade ‘Djanbung Gardens’, que mais tarde serviu de sede para o primeiro colégio técnico em Permacultura no mundo (http://permaculture.com.au/happen-animals-everyone-went-vegan/).

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